quarta-feira, 19 de junho de 2024

O LIVRO O CÉU E O INFERNO. O INFERNO.

 


O LIVRO  O CÉU E O INFERNO.

CAPÍTULO IV
O INFERNO

Intuição das penas futuras. — Inferno cristão imitado do inferno pagão. — Os limbos. — Quadro do inferno pagão. — Quadro do inferno cristão.

Intuição das penas futuras.

 

1. Em todos os tempos o homem acreditou, por intuição, que a vida futura devia ser bem-aventurada ou desventurada em razão do bem e do mal que se realiza aqui embaixo; porém a ideia que ele faz dessa vida futura está em relação com o desenvolvimento de seu senso moral, e as noções mais ou menos exatas que possui do bem e do mal; penas e recompensas são reflexo de seus instintos predominantes. É assim que os povos guerreiros colocam sua suprema felicidade nas honrarias prestadas à bravura, os povos caçadores na abundância da caça, os povos sensuais nas delícias da volúpia. Enquanto o homem for dominado pela matéria, pode só imperfeitamente compreender a espiritualidade, é por isso que faz das penas e dos gozos futuros um quadro mais material que espiritual; imagina que se deve beber e comer no outro mundo, mas melhor do que na terra, e coisas melhores. * Chegado a certo nível, há nas crenças referentes ao futuro uma mistura de espiritualidade e de materialidade; é assim que ao lado da beatitude contemplativa, ele coloca um inferno com torturas físicas.


* Um garoto saboiano, ao qual o padre pintava um quadro sedutor da vida futura, perguntou-lhe se lá todo o mundo comia pão branco como em Paris.



2. Não podendo o homem primitivo conceber senão o que vê, calcou naturalmente seu futuro sobre o presente; para compreender outros tipos além dos que tinha à vista, precisava de um desenvolvimento intelectual que só devia se realizar com o tempo. Também o quadro que ele imagina dos castigos da vida futura é apenas o reflexo dos males da humanidade, mas em mais ampla proporção; reuniu ali todas as torturas, todos os suplícios, todas as aflições que encontra na Terra; é assim que, nos climas ardentes, ele imaginou um inferno de fogo, e nas regiões boreais um inferno glacial. Não estando ainda desenvolvido o sentido que devia mais tarde lhe fazer compreender o mundo espiritual, ele podia conceber somente penas materiais; por isso, com pequenas diferenças de forma, o inferno de todas as religiões se assemelha.

Inferno cristão imitado do inferno pagão.


3. O inferno dos pagãos, descrito e dramatizado pelos poetas, foi o modelo mais grandioso do gênero; perpetuou-se no dos cristãos o qual teve, também, seus panegiristas poéticos. Comparando-os, encontram-se neles, exceto os nomes e algumas variantes nos detalhes, inúmeras analogias; num e noutro o fogo material é a base dos tormentos, porque é o símbolo dos mais cruéis sofrimentos. Mas, coisa estranha, os cristãos, em muitos pontos, exageraram o inferno dos pagãos! Se estes últimos tinham no deles o tonel das Danaides, a roda de Íxion, o rochedo de Sísifo, eram suplícios individuais; o inferno cristão tem para todos caldeiras borbulhantes cujas tampas os anjos levantam para ver as contorções dos condenados às penas eternas;* Deus ouve sem compaixão os gemidos destes durante a eternidade. Jamais os pagãos descreveram os habitantes dos Campos Elíseos saciando a vista com os suplícios do Tártaro.**


* Sermão pregado em Montpellier em 1860. ** “Os bem-aventurados, sem sair do lugar que ocupam, sairão, entretanto, de uma certa maneira, em razão de seus dons de inteligência e de suas visões distintas, a fim de considerar as torturas dos danados; e, vendo-os, não somente não sentirão nenhuma dor, mas estarão cumulados de alegria, e renderão graças a Deus pela própria felicidade, assistindo à inefável calamidade dos ímpios” (Santo Tomás de Aquino.)



4. Como os pagãos, os cristãos têm seu rei dos infernos que é Satã, com a diferença de que Plutão se limitava a governar o sombrio império que lhe tocara na partilha, mas não era malvado; retinha em sua casa aqueles que haviam cometido o mal, porque essa era sua missão, mas não procurava induzir os homens ao mal para ter o prazer de fazê-los sofrer, ao passo que Satã recruta em toda a parte vítimas que se compraz em fazer atormentar pelas suas legiões de demônios armados de forcados para as agitar no fogo. Discutiu-se mesmo seriamente sobre a natureza desse fogo que queima incessantemente os condenados sem jamais os consumir; perguntou-se se era um fogo de betume.* O inferno cristão não fica, portanto, a dever nada ao inferno pagão.


* Sermão pregado em Paris em 1861.



5. As mesmas considerações que, entre os Antigos, haviam feito localizar a morada da felicidade, haviam também feito circunscrever o lugar dos suplícios. Tendo os homens colocado a primeira nas regiões superiores, era natural colocar o segundo nos lugares inferiores, ou seja, no centro da Terra ao qual certas cavidades sombrias e de aspecto terrível serviam de entrada. Foi também lá que os cristãos colocaram por muito tempo a morada dos reprovados. Notemos ainda sobre este assunto outra analogia. O inferno dos pagãos encerrava de um lado os Campos Elíseos e do outro o Tártaro; o Olimpo, morada dos deuses e dos homens divinizados, ficava nas regiões superiores. Segundo a carta do Evangelho, Jesus desceu aos infernos, ou seja, aos lugares baixos, para daí tirar as almas dos justos que aguardavam sua vinda. Os infernos não eram, então, unicamente um lugar de suplício; como entre os pagãos, eles estavam também nos lugares baixos. Assim como o Olimpo, a morada dos anjos e dos santos era nos lugares elevados; colocaram-no além do céu das estrelas que se acreditava limitado.

6. Esta mistura das ideias pagãs e das ideias cristãs nada tem que deva surpreender. Jesus não podia subitamente destruir crenças enraizadas; faltavam aos homens os conhecimentos necessários para conceber o infinito do espaço e o número infinito dos mundos; a Terra era para eles o centro do universo; não lhe conheciam nem a forma nem a estrutura interna; tudo era para eles limitado a seu ponto de vista: suas noções do futuro não se podiam estender além de seus conhecimentos. Jesus achava-se então na impossibilidade de iniciá-los no verdadeiro estado das coisas; mas, por outro lado, não querendo sancionar por sua autoridade os preconceitos vigentes, ele se absteve, deixando ao tempo o cuidado de retificar as ideias. Limitou-se a falar vagamente da vida bem-aventurada e dos castigos que aguardam os culpados, mas em nenhum lugar, em seus ensinamentos, se encontra o quadro dos suplícios corporais dos quais os cristãos fizeram um artigo de fé. Eis como as ideias do inferno pagão se perpetuaram até os nossos dias. Foi precisa a difusão das luzes nos tempos modernos, e o desenvolvimento geral da inteligência humana para lhes fazer justiça. Mas então, como nada de positivo substituía as ideias preconcebidas, ao longo período de uma crença cega sucedeu, como transição, o período de incredulidade, ao qual a nova revelação vem pôr um termo. Era preciso demolir antes de reconstruir, pois é mais fácil fazer aceitar ideias justas àqueles que não creem em nada, porque eles sentem que lhes falta algo, do que aos que têm uma fé robusta no que é absurdo.

7. Pela localização do céu e do inferno, as religiões cristãs foram levadas a admitir para as almas apenas duas situações extremas: a felicidade perfeita e o sofrimento absoluto. O purgatório não é mais do que uma posição intermediária momentânea à saída da qual elas passam sem transição à morada dos bem-aventurados. Não poderia ser de outra forma segundo a crença na determinação definitiva do destino da alma depois da morte. Se não há senão duas moradas, a dos eleitos e a dos reprovados, não se podem admitir vários graus em cada uma sem admitir a possibilidade de galgá-los, e, por conseguinte o progresso; ora, se há progresso, não há destino definitivo; se há destino definitivo, não há progresso. Jesus resolve a questão quando diz: “Há muitas moradas na casa de meu pai .” *


* Vede o Evangelho segundo o Espiritismo, cap. III.


 

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Os limbos.


8. A Igreja admite, é verdade, uma posição especial em certos casos particulares. As crianças mortas em tenra idade, não tendo feito nenhum mal, não podem ser condenadas ao fogo eterno; por outro lado, não tendo feito nenhum bem, não têm nenhum direito à felicidade suprema. Ficam então, diz ela, no limbo, situação mista que jamais foi definida, na qual, não sofrendo, também não gozam da perfeita felicidade. Mas visto que seu destino está irrevogavelmente determinado, elas estão privadas dessa felicidade por toda a eternidade. Essa privação, embora não tenha dependido delas que fosse de outra maneira, equivale a um suplício eterno imerecido. Acontece o mesmo com os selvagens que, não tendo recebido a graça do batismo e as luzes da religião, pecam por ignorância, abandonando-se aos instintos naturais, não podem ter nem a culpa nem os méritos dos que puderam trabalhar com conhecimento de causa para seu avanço. A simples lógica repele semelhante doutrina em nome da justiça de Deus. A justiça de Deus está toda nesta expressão de Cristo: “A cada um segundo suas obras”; mas é preciso entender que se refere às obras boas ou más que se realizam livremente, voluntariamente, as únicas em cuja responsabilidade se incorre, o que não é o caso da criança, nem do selvagem, nem daquele do qual não dependeu ser esclarecido.

Quadro do inferno pagão.


9. Só conhecemos o inferno pagão pela narrativa dos poetas; Homero e Virgílio fizeram dele a mais completa descrição, mas é preciso levar em conta os limites que a poesia impõe à forma. A de Fénelon, em seu Telêmaco, embora extraída da mesma fonte quanto às crenças fundamentais, tem a simplicidade mais precisa da prosa. Descrevendo o aspecto lúgubre dos lugares, ressalta acima de tudo o gênero de sofrimentos infligidos aos culpados, e se estende muito sobre o destino dos maus reis, tendo em vista a instrução de seu real aluno. Por mais popular que seja sua obra, talvez muitas pessoas não se lembrem dela, ou não tenham refletido o suficiente sobre ela para estabelecer uma comparação; é por isso que cremos útil reproduzir aqui as partes que têm uma relação mais direta com o assunto que nos ocupa, ou seja, aquelas que se referem mais precisamente à penalidade individual.

10. “Ao entrar, Telêmaco ouve os gemidos de uma sombra que não podia consolar-se. Qual é então, disse-lhe ele, vossa desgraça? Eu era, responde-lhe a sombra, Nabofarzan, rei da soberba Babilônia; todos os povos do Oriente tremiam ao simples som do meu nome; fazia-me adorar pelos babilônios num templo de mármore onde era representado por uma estátua de ouro diante da qual ardiam dia e noite os mais preciosos perfumes da Etiópia; jamais alguém ousou contradizer-me sem ser logo punido; inventavam-se todo dia novos prazeres para tornar minha vida mais deliciosa. Eu era então jovem e robusto; ah! quantos dias afortunados tinha ainda a gozar no trono! Mas uma mulher que eu amava, e que não me amava, fez-me sentir que eu não era deus: ela me envenenou; não sou mais nada. Puseram ontem com pompa minhas cinzas numa urna de ouro; choraram, arrancaram os cabelos; fingiram querer jogar-se nas chamas de minha fogueira para morrer comigo; vão ainda gemer ao pé do soberbo túmulo onde puseram minhas cinzas: mas ninguém me lamenta, minha memória é odiada mesmo na minha família, e aqui embaixo já estou sofrendo horríveis tratamentos.

“Telêmaco, tocado por esse espetáculo, disse-lhe: Éreis verdadeiramente feliz durante vosso reinado? Sentíeis aquela doce paz sem a qual o coração permanece sempre apertado e ressequido em meio às delícias? Não, respondeu o babilônio; nem mesmo sei o que quereis dizer. Os sábios elogiam essa paz como o único bem: por mim, nunca a senti; meu coração era incessantemente agitado por desejos novos, temor e esperança. Eu tentava atordoar-me pela excitação de minhas paixões; tinha o cuidado de manter essa embriaguez para torná-la contínua; o menor intervalo de sensatez teria sido demasiado amargo. Eis a paz de que gozei; qualquer outra me parece uma fábula e um sonho; eis os bens que lamento.

“Falando assim, o babilônio chorava como um homem covarde que foi amolecido pela fortuna e não está acostumado a suportar constantemente a desgraça. Tinha perto dele alguns escravos que haviam sido sacrificados em sua homenagem no funeral; Mercúrio entregara-os a Caronte com seu rei, e dera-lhes poder absoluto sobre esse rei que haviam servido na terra. Essas sombras de escravos não mais temiam a sombra de Nabofarzan; elas a mantinham acorrentada e faziam-lhe as mais cruéis afrontas. Uma dizia-lhe: Nós não éramos homens como tu? Como podias ser tão insensato a ponto de te creres um deus? E não devias lembrar-te de que eras da raça dos outros homens? Outra, para insultá-lo, dizia: Tinhas razão de não querer que te tomassem por um homem, pois eras um monstro sem humanidade. Uma outra dizia-lhe: Pois bem! Onde estão agora os teus aduladores? Não tens mais nada para dar, desgraçado! Não podes fazer mais nenhum mal; és agora escravo dos teus próprios escravos: os deuses são lentos para fazer justiça, mas enfim a fazem.

“A essas duras palavras, Nabofarzan se jogava de rosto no chão, arrancando os cabelos num ataque de raiva e desespero. Mas Caronte dizia aos escravos: Puxai-o pela corrente; levantai-o à força, ele não terá nem mesmo o consolo de esconder sua vergonha; é preciso que todas as sombras do Estige sejam testemunhas para justificar os deuses, que aguentaram tanto tempo que este ímpio reinasse na Terra.

“Ele logo percebe, bem perto dele, o negro Tártaro; dali saía uma fumaça negra e espessa, cujo cheiro pestilento causaria a morte se ele se espalhasse pela morada dos vivos. Essa fumaça cobria um rio de fogo e turbilhões de chamas, cujo estrépito, semelhante ao das torrentes mais impetuosas quando se lançam dos mais altos rochedos no fundo dos abismos, fazia que nada se pudesse ouvir distintamente naqueles tristes lugares.

“Telêmaco, secretamente animado por Minerva, entra sem temor nesse abismo. Primeiro percebeu muitos homens que viveram nas mais baixas condições, e que eram punidos por terem buscado riquezas por meio de fraudes, traições e crueldades. Notou ali muitos ímpios hipócritas que, fingindo amar a religião, tinham-na usado como um belo pretexto para satisfazerem sua ambição e enganarem os homens crédulos: esses homens, que haviam abusado da própria virtude, embora ela seja o maior dom dos deuses, eram punidos como os mais celerados de todos os homens. Os filhos que assassinaram pais e mães, as esposas que sujaram as mãos no sangue dos esposos, os traidores que entregaram a pátria depois de terem violado todos os juramentos, sofriam penas menos cruéis do que esses hipócritas. Os três juízes dos infernos tinham-no desejado assim, e eis sua razão: esses hipócritas não se contentam com a maldade como o resto dos ímpios; querem ainda passar por bons e fazem, por sua falsa virtude, que os homens não ousem mais confiar na verdadeira virtude. Os deuses, com os quais eles brincaram e tornaram desprezíveis para os homens, aprazem-se em empregar todo o seu poder para se vingarem de seus insultos.

“Perto destes apareciam outros homens que o vulgo não crê muito culpados, e que a vingança divina persegue implacavelmente; são os ingratos, os mentirosos, os aduladores que elogiaram o vício, os críticos maliciosos que tentaram aviltar a mais pura virtude; enfim, aqueles que temerariamente julgaram coisas sem conhecê-las a fundo, e com isso prejudicaram a reputação dos inocentes.

“Telêmaco, vendo os três juízes que estavam sentados e que condenavam um homem, ousou perguntar-lhes quais eram seus crimes. Imediatamente o condenado, tomando a palavra, exclamou: Nunca fiz nenhum mal; tive todo o prazer em fazer o bem; fui magnífico, liberal, justo, compassivo; o que se pode, portanto, reprovar-me? Então Minos disse-lhe: Não te reprovamos nada em relação aos homens; mas tu não devias menos aos homens do que aos deuses? Qual é então essa justiça de que te gabas? Não faltaste a nenhum dever para com os homens, que não são nada; foste virtuoso, mas dirigiste toda a tua virtude a ti mesmo, e não aos deuses, que te deram-na, pois querias gozar do fruto da tua própria virtude e fechar-te em ti mesmo: foste a tua divindade. Mas os deuses, que fizeram tudo, e que não fizeram nada a não ser por eles mesmos, não podem renunciar a seus direitos; tu os esqueceste, eles te esquecerão; entregar-te-ão a ti mesmo, visto que quiseste ser teu e não deles. Busca agora então, se puderes, a consolação em teu próprio coração. Eis-te separado para sempre dos homens aos quais quiseste agradar; eis-te só contigo mesmo, que eras teu ídolo: aprende que não há verdadeira virtude sem o respeito e o amor aos deuses, aos quais tudo é devido. Tua falsa virtude, que seduziu por muito tempo os homens fáceis de enganar, vai ser desmascarada.Os homens, julgando vícios e virtudes apenas pelo que os choca ou lhes convém, são cegos sobre o bem e sobre o mal. Aqui, uma luz divina inverte todos os seus julgamentos superficiais; ela condena com frequência o que eles admiram e justifica o que eles condenam.

“A essas palavras, esse filósofo, como que atingido por um raio, não podia suportar a si mesmo. A complacência que tivera outrora ao contemplar sua moderação, sua coragem e suas inclinações generosas, torna-se desespero. A visão de seu próprio coração, inimigo dos deuses, torna-se seu suplício; ele se vê e não pode cessar de se ver; vê a vaidade dos julgamentos dos homens, aos quais quis agradar em todas as suas ações. Ocorre uma revolução universal em todo o seu interior, como se suas entranhas fossem reviradas; ele não se reconhece mais; falta-lhe todo o apoio de seu coração; sua consciência, cujo testemunho lhe fora tão doce, se ergue contra ele e reprova-lhe amargamente o desvario e a ilusão de todas as suas virtudes, que não tiveram o culto da divindade por princípio e por fim: ele está perturbado, consternado, cheio de vergonha, de remorsos e de desespero. As fúrias não o atormentam, porque lhes basta tê-lo entregado a si mesmo, e que seu próprio coração vingue os deuses menosprezados. Não podendo se esconder de si mesmo, ele procura os lugares mais escuros para se esconder dos outros mortos. Procura as trevas e não pode encontrá-las; uma luz importuna o segue por toda a parte; em toda a parte os raios penetrantes da verdade vão vingar a verdade que ele negligenciou seguir. Tudo o que amou se torna odioso, como sendo a fonte de seus males, que jamais podem acabar. Diz a si mesmo: Ó insensato! Então não conheci nem os deuses, nem os homens, nem a mim mesmo! Não, não conheci nada, visto que jamais amei o único e verdadeiro bem; todos os meus passos foram desvarios; minha sabedoria não era senão loucura; minha virtude era apenas um orgulho ímpio e cego: eu era meu próprio ídolo.

“Enfim Telêmaco avistou os reis que eram condenados por terem abusado de seu poder. De um lado uma fúria vingadora apresentava-lhes um espelho que lhes mostrava toda a deformidade de seus vícios: ali eles viam e não podiam deixar de ver sua vaidade grosseira e ávida das mais ridículas lisonjas; sua dureza para com os homens, cuja felicidade deveriam ter assegurado; sua insensibilidade para com a virtude; seu temor de ouvir a verdade; sua inclinação para os homens covardes e aduladores; sua falta de aplicação; sua moleza; sua indolência; sua desconfiança descabida; seu fausto e excessiva magnificência baseada na ruína dos povos; sua ambição de comprar um pouco de glória vã com o sangue de seus cidadãos; enfim sua crueldade, que procura a cada dia novas delícias em meio às lágrimas e ao desespero de tantos infelizes. Eles viam-se sem cessar nesse espelho; achavam-se mais horríveis e mais monstruosos do que a Quimera, vencida por Belerofonte, a Hidra de Lerna abatida por Hércules, ou mesmo Cérbero, embora vomite pelas três goelas escancaradas um sangue negro e venenoso que é capaz de empestar toda a raça dos mortais que vivem na terra.

“Ao mesmo tempo, de outro lado, outra fúria lhes repetia com insulto todas as lisonjas que seus aduladores lhes haviam feito durante a vida, e apresentava-lhes outro espelho, no qual eles se viam tais como a lisonja os retratara. A oposição dessas duas pinturas tão contrárias era o suplício de sua vaidade. Notava-se que os mais malvados desses reis eram aqueles a quem se fizeram as lisonjas mais magníficas durante a vida, porque os malvados são mais temidos do que os bons, e eles exigem sem pudor as covardes lisonjas dos poetas e dos oradores de seu tempo.

“Ouvem-se-nos gemer nessas profundas trevas, onde podem ver somente os insultos e os escárnios que têm de aguentar. Não têm à sua volta nada que não os repila, não os contradiga, que não os confunda; ao passo que na terra não davam importância à vida dos homens, e pretendiam que tudo era feito para servi-los. No Tártaro eles são entregues a todos os caprichos de alguns escravos que lhes fazem sentir por sua vez uma cruel servidão: eles servem com dor, e não lhes resta nenhuma esperança de poder jamais abrandar o cativeiro; apanham desses escravos, que se tornaram seus tiranos implacáveis, como uma bigorna apara os golpes dos martelos dos Ciclopes, quando Vulcano os força a trabalhar nas fornalhas ardentes do monte Etna.

“Ali Telêmaco avistou rostos pálidos, hediondos e consternados. É uma tristeza negra que rói esses criminosos; têm horror de si mesmos, e não podem libertar-se desse horror tal como de sua própria natureza; não precisam de outro castigo que o de suas faltas, suas próprias faltas: veem-nas sem cessar em toda sua enormidade; elas se lhes apresentam como espectros horríveis, perseguem-nos. Para se proteger, eles procuram uma morte mais poderosa do que aquela que os separou de seus corpos. No desespero em que se encontram, pedem socorro a uma morte que possa extinguir neles todo sentimento e todo conhecimento; pedem aos abismos para que os engulam a fim de se livrarem dos raios vingadores da verdade que os persegue, mas estão reservados à vingança que destila sobre eles gota a gota, e que não se esgotará jamais. A verdade, que eles temeram ver, faz seu suplício; eles a veem, têm olhos apenas para vê-la erguer-se contra eles: sua visão transpassa-os, dilacera-os, arrancaos a si mesmos; ela é como o raio; sem destruir nada por fora, penetra até o fundo das entranhas.

“Entre esses objetos que faziam os cabelos de Telêmaco ficar em pé, ele viu vários dos antigos reis da Lídia que eram punidos por terem preferido as delícias de uma vida fácil ao trabalho, para o alívio dos povos, que deve ser inseparável da realeza.

“Esses reis acusavam-se mutuamente de cegueira. Um dizia ao outro, que fora seu filho: Não vos recomendara eu muitas vezes, durante minha velhice e antes de morrer, reparardes os males que eu fizera por negligência? Ah! Pai desgraçado! dizia o filho, fostes vós que me perdestes! Foi vosso exemplo que me inspirou o fausto, o orgulho, a volúpia e a dureza para com os homens! Vendo-vos reinar com tanta frouxidão e cercado de covardes aduladores, acostumei-me a gostar da adulação e dos prazeres. Acreditei que o resto dos homens era, em relação aos reis, o que os cavalos e as outras bestas de carga são em relação aos homens, ou seja, animais dos quais não se faz caso a não ser enquanto prestam serviços e dão comodidades. Eu acreditei, sois vós que me fizestes crer nisso; e agora sofro tantos males por vos ter imitado. A essas acusações acrescentavam as mais horrorosas maldições, e pareciam tomados de raiva para se dilacerarem mutuamente.

“Em torno desses reis esvoaçavam ainda, como corujas à noite, as cruéis suspeitas, os vãos alarmes, as desconfianças que vingam os povos da dureza de seus reis, a fome insaciável de riquezas, a falsa glória sempre tirânica e a frouxidão covarde que redobra todos os males de que se sofre, sem nunca poder dar prazeres sólidos.

“Viam-se vários desses reis severamente punidos, não pelos males que fizeram, mas por terem negligenciado o bem que deveriam ter feito. Todos os crimes dos povos, que vêm da negligência com a qual se fazem observar as leis, eram imputados aos reis, que devem reinar apenas a fim de que as leis reinem por seu ministério. Imputavam-se-lhes também todas as desordens que vêm do fausto, do luxo e de todos os outros excessos que jogam os homens num estado violento e na tentação de desprezar as leis para adquirir bens. Sobretudo tratavam-se rigorosamente os reis que, em vez de serem bons e vigilantes pastores do povo, só pensaram em devastar o rebanho, como lobos devoradores.

“Mas o que mais consternou Telêmaco foi ver, nesse abismo de trevas e de males, um grande número de reis que, tendo passado na terra por reis bastante bons, foram condenados às penas do Tártaro por se terem deixado governar por homens maus e artificiosos. Eram punidos pelos males que deixaram fazer por sua autoridade. Ademais, a maioria desses reis não fora nem boa nem má, tão grande fora sua fraqueza; jamais temeram não conhecer a verdade; não tiveram gosto pela virtude, e não tiveram o prazer de fazer o bem.”

Quadro do inferno cristão.


11. A opinião dos teólogos sobre o inferno está resumida nas citações a seguir.* Esta descrição, sendo extraída dos autores sagrados e da vida dos santos, pode tanto mais ser considerada como a expressão da fé ortodoxa na matéria, quanto ela é a cada instante reproduzida, com pequenas variantes, nos sermões da cátedra evangélica e nas instruções pastorais.


* Estas citações são tiradas da obra intitulada: O Inferno, por Auguste Callet.



12. “Os demônios são puros Espíritos, e os condenados, presentemente no inferno, podem também ser considerados como puros Espíritos, visto que só sua alma aí desceu, e que suas ossadas entregues ao pó se transformam incessantemente em ervas, em plantas, em frutos, em minerais, em líquidos, sofrendo, sem saber, as contínuas metamorfoses da matéria. Mas os condenados, como os santos, devem ressuscitar no último dia, e retomar, para não mais o deixar, um corpo carnal, o mesmo corpo sob o qual foram conhecidos entre os vivos. O que os distinguirá uns dos outros é que os eleitos ressuscitarão num corpo purificado e todo radioso, os condenados num corpo maculado e deformado pelo pecado. Portanto, não haverá mais no inferno somente puros Espíritos; haverá homens como nós. O inferno é, por conseguinte, um lugar físico, geográfico, material, visto que será povoado de criaturas terrestres, tendo pés, mãos, boca, língua, dentes, orelhas, olhos semelhantes aos nossos, e sangue nas veias, e nervos sensíveis à dor.

Onde está situado o inferno? Alguns doutores colocaram-no nas entranhas mesmas da nossa terra; outros, em não sei qual planeta; mas a questão não foi decidida por nenhum concílio. Está-se, portanto, sobre este ponto, reduzido às conjeturas; a única coisa que se afirma, é que o inferno, seja qual for o lugar em que estiver situado, é um mundo composto de elementos materiais, mas um mundo sem sol, sem lua, sem estrelas, mais triste, mais inóspito, mais desprovido de todo germe e de toda aparência de bem do que as partes mais inabitáveis deste mundo onde pecamos.

“Os teólogos circunspectos não se arriscam a pintar, à maneira dos egípcios, dos hindus e dos gregos, todos os horrores dessa morada; eles se limitam a mostrar-nos dela, como uma amostra, o pouco que a Escritura desvela, a lagoa de fogo e de enxofre do apocalipse, e os vermes de Isaías, esses vermes eternamente pululando sobre as carcaças do Thophel, e os demônios atormentando os homens que perderam, e os homens chorando e rangendo os dentes, segundo a expressão dos Evangelistas.

“Santo Agostinho não concorda que essas penas físicas sejam simples imagens das penas morais; ele vê, numa verdadeira lagoa de enxofre, vermes e serpentes verdadeiros encarniçando-se sobre todas as partes do corpo dos condenados e juntando suas mordidas às do fogo. Ele pretende, segundo um versículo de São Marcos, que esse fogo estranho, embora material como o nosso, e agindo sobre corpos materiais, conservá-los-á como o sal conserva a carne das vítimas. Mas os condenados eternos, vítimas sempre sacrificadas e sempre vivas, sentirão a dor desse fogo que queima sem destruir; ele penetrará sob sua pele; eles ficarão embebidos dele e saturados em todos os membros, e na medula dos seus ossos, e na pupila dos seus olhos, e nas fibras mais recônditas e mais sensíveis de seu ser. A cratera de um vulcão, se pudessem nela mergulhar, seria para eles um lugar de refrigério e de repouso.

“Assim falam, com toda a segurança, os teólogos mais tímidos, mais discretos, mais reservados; não negam, aliás, que haja no inferno outros suplícios corporais; dizem somente que, para falar disso, não têm um conhecimento suficiente, tão positivo, ao menos, do que o que lhes foi dado do horrível suplício do fogo e do nojento suplício dos vermes. Mas há teólogos mais arrojados ou mais esclarecidos que fazem do inferno descrições mais detalhadas, mais variadas e mais completas; e, ainda que não se saiba em que lugar do espaço esse inferno está situado, há santos que o viram. Não foram de lira em punho, como Orfeu, ou de espada em punho, como Ulisses; foram lá transportados em Espírito. Santa Teresa é desse número.

“Pareceria, segundo o relato da santa, que há cidades no inferno; ela viu ali, pelo menos, uma espécie de ruela longa e estreita, como há tantas nas velhas cidades; ela entrou lá, andando com horror num terreno lamacento, fétido, onde pululavam monstruosos répteis; mas foi detida em sua marcha por uma muralha que barrava a ruela; nessa muralha havia um nicho onde Teresa se enfiou, sem nem saber como isso aconteceu. Era, disse ela, o lugar que lhe estava destinado, se abusasse, em vida, das graças que Deus espalhava sobre sua cela de Ávila. Embora se tivesse introduzido com maravilhosa facilidade nesse nicho de pedra, não podia, no entanto, nem sentar-se, nem deitar-se, nem ficar de pé: nem tampouco podia sair dali; essas horríveis muralhas, tendo-se abaixado sobre ela, envolviam-na, apertavam-na, como se fossem animadas. Pareceu-lhe que a asfixiavam, a estrangulavam, e, ao mesmo tempo, que a esfolavam viva e a retalhavam. E ela sentia-se queimar, e experimentava simultaneamente todos os gêneros de angústias. Nenhuma esperança de socorro; à sua volta, apenas trevas, e, no entanto, através dessas trevas, ela distinguia ainda, não sem espanto, a hedionda rua onde estava enfiada e toda sua vizinhança imunda, espetáculo para ela tão intolerável quanto os apertos de sua prisão.*

“Não era sem dúvida senão um cantinho do inferno. Outros viajantes espirituais foram mais favorecidos. Viram no inferno grandes cidades em fogo, Babilônia e Nínive, mesmo Roma, seus palácios e templos incendiados, e todos os habitantes acorrentados, o traficante ao seu balcão, padres reunidos com cortesãos em salas de festins, e urrando em seus assentos dos quais não se podiam mais arrancar, e levando aos lábios, para matar a sede, taças de onde saíam chamas; criados de joelhos, dentro de cloacas ferventes, de braços estendidos, e príncipes de cuja mão escorria sobre eles, em lava devorante, ouro fundido. Outros viram no inferno planícies sem limites que camponeses famélicos cavavam e semeavam, e como dessas planícies fumegantes de seu suor, e dessas semeaduras estéreis, nada nascia, esses camponeses se entre devoravam; depois disso, tão numerosos quanto antes, tão magros, tão esfomeados, dispersavam-se em bandos até o horizonte, indo buscar ao longe, mas em vão, terras mais aventuradas, e logo eram substituídos, nos campos que abandonavam, por outras colônias errantes de condenados às penas eternas. Houve outros que viram no inferno montanhas cheias de precipícios, florestas gementes, poços sem água, fontes alimentadas pelas lágrimas, riachos de sangue, turbilhões de neve em desertos de gelo, barcas de desesperados vogando sobre mares sem praias. Reviu-se aí, numa palavra, tudo o que os pagãos ali viam, um reflexo lúgubre da terra, uma sombra desmedidamente aumentada de suas misérias, seus sofrimentos naturais eternizados, e até os calabouços e patíbulos, e instrumentos de tortura que nossas próprias mãos forjaram.

“Há lá em baixo, com efeito, demônios que, para melhor atormentar os homens em seus corpos, tomam corpos. Estes têm asas de morcego, chifres, couraças de escamas, patas com garras, dentes agudos; são-nos mostrados armados de gládios, de forcados, de pinças, de tenazes ardentes, de serras, de grelhas, de foles, de clavas, e fazendo, durante a eternidade, com carne humana, o ofício de cozinheiros e açougueiros; aqueles, transformados em leões ou em víboras enormes, arrastando suas presas para cavernas solitárias; alguns transformam-se em corvos, para arrancar os olhos a certos culpados, e outros em dragões voadores, para carregá-los nas costas e levá-los apavorados, sangrando, gritando através dos espaços tenebrosos, e depois deixá-los cair de novo na lagoa de enxofre. Aqui nuvens de gafanhotos, escorpiões gigantescos, cuja visão dá arrepios, cujo odor dá náuseas, cujo mínimo toque dá convulsões; lá, monstros policéfalos, abrindo de todos os lados goelas vorazes, sacudindo sobre as cabeças disformes crinas de víboras, triturando os reprovados entre as mandíbulas sangrentas, e vomitando-os todos moídos, mas vivos, porque são imortais.

“Esses demônios de forma sensível, que lembram tão nitidamente os deuses do Amenthi e do Tártaro, e os ídolos que os fenícios, os moabitas e os outros gentios vizinhos da Judeia adoravam, esses demônios não agem ao acaso; cada um tem sua função e sua obra; o mal que fazem no inferno está em relação com o mal que inspiraram e fizeram cometer na Terra.** Os condenados são punidos em todos os seus sentidos e em todos os seus órgãos, porque ofenderam Deus por todos os seus sentidos e por todos os seus órgãos; punidos de uma maneira como gulosos, pelos demônios da gula, e de outra maneira como preguiçosos, pelos demônios da preguiça, e de outra como fornicadores, pelos demônios da fornicação, e de tantas maneiras quanto há diversas maneiras de pecar. Eles terão frio queimando, e calor gelando; estarão ávidos de repouso e ávidos de movimento; e sempre esfomeados, e sempre sedentos, e mil vezes mais cansados do que o escravo no fim do dia, mais doentes do que os moribundos, mais abatidos, mais alquebrados, mais cobertos de feridas do que os mártires, e isso não acabará.

“Nenhum demônio se desanima, nem jamais se desanimará de sua horrenda tarefa; eles são todos, sob esse aspecto, bem disciplinados, e fiéis a executar as ordens de vingadores que receberam. Sem isso, o que se tornaria o inferno? Os pacientes descansariam se os carrascos acabassem por brigar ou cansar-se. Mas não há repouso para uns, nem brigas entre os outros; por mais malvados que sejam, e incontáveis, os demônios se entendem de uma ponta à outra do abismo, e nunca se viram na terra nações mais dóceis a seus príncipes, exércitos mais obedientes a seus chefes, comunidades monásticas mais humildemente submissas a seus superiores.***

“Não se conhece muito, aliás, a populaça dos demônios, esses espíritos vis dos quais são compostas as legiões de vampiros, de vampiras, de sapos, escorpiões, corvos, hidras, salamandras e outros animais sem nome, que constituem a fauna das regiões infernais; mas conhecem-se e nomeiam-se vários dos príncipes que comandam essas legiões, entre outros Belfegor, o demônio da luxúria, Abaddon ou Apolyon, o demônio do homicídio, Belzebu, o demônio dos desejos impuros, ou o senhor das moscas, que engendram a corrupção; e Mamon, o demônio da avareza, e Moloch, e Belial, e Baalgad e Astaroth, e tantos outros, e acima deles seu chefe universal, o sombrio arcanjo que tinha no céu o nome de Lúcifer, e usa no inferno o de Satã.

“Eis, em resumo, a ideia que nos dão do inferno, considerado do ponto de vista de sua natureza física e das penas físicas que aí se sofrem. Consultai os escritos dos Doutores da Igreja; interrogai nossas piedosas lendas; olhai as esculturas e os quadros de nossas igrejas; prestai ouvidos ao que se diz em nossas cátedras, e aprendereis muito mais.


* Reconhecemos, nessas visões, todos os caracteres dos pesadelos; é, pois, provável, ter sido um efeito desse gênero que se produziu com Santa Teresa.

** Em verdade, singular punição essa que consiste em poder continuar, em maior escala, o mal que fizeram em menor escala na Terra! Seria mais racional que eles próprios sofressem as consequências desse mal, em vez de se darem ao prazer de imputá-lo aos outros.

*** Esses mesmos demônios, rebeldes a Deus para o bem, são de uma docilidade exemplar para fazer o mal; nenhum deles recua nem abranda a marcha durante a eternidade. Que estranha metamorfose se operou neles, que haviam sido criados puros e perfeitos como os anjos! Não é bem singular vê-los dar exemplo de perfeita compreensão, de harmonia, de concórdia inabalável, enquanto os homens não sabem viver em paz e se entredilaceram na Terra? Vendo o luxo dos castigos reservados aos danados, e comparando sua situação com as dos demônios, nos perguntamos quem deve ser mais lamentado: os carrascos ou as vítimas?



13. O autor faz após este quadro as seguintes reflexões, cujo alcance todos compreenderão:

“A ressurreição dos corpos é um milagre; mas é preciso um segundo milagre para dar a esses corpos mortais, já gastos uma vez pelas passageiras provas da vida, aniquilados já uma vez, a virtude de subsistir, sem se dissolverem, numa fornalha onde os metais se evaporariam. Que se diga que a alma é seu próprio carrasco, que Deus não a persegue, mas que ele a abandona no estado desventurado que ela escolheu, isso pode compreender-se com todo o rigor, embora o abandono eterno de um ser perdido e sofredor pareça pouco conforme à bondade do Criador; mas o que se diz da alma e das penas espirituais, não se pode, de maneira nenhuma, dizer dos corpos e das penas corporais; para perpetuar essas penas corporais, não basta que Deus retire sua mão, é preciso, ao contrário, que ele a mostre, que intervenha, que aja, sem o que o corpo sucumbiria.

“Os teólogos supõem, portanto, que Deus opera efetivamente, após a ressurreição, esse segundo milagre de que falamos. Ele tira primeiro, do sepulcro que os devorara, nossos corpos de argila; retira-os tal como aí entraram, com suas enfermidades originais e as degradações sucessivas da idade, da doença e do vício; ele devolve-os a nós nesse estado, decrépitos, friorentos, gotosos, cheios de necessidades, sensíveis a uma picada de abelha, todos cobertos dos estigmas que a vida e a morte aí imprimiram, e é esse o primeiro milagre; depois, a esses corpos débeis, prontos a retornar ao pó do qual saem, ele inflige uma propriedade que eles nunca tiveram, e eis o segundo milagre; ele lhes inflige a imortalidade, esse mesmo dom que, na sua cólera, dizei antes na sua misericórdia, ele retirara de Adão à saída do Éden. Quando Adão era imortal, era invulnerável, e quando cessou de ser invulnerável, tornou-se mortal; a morte seguiu de perto a dor.

“A ressurreição não nos restabelece, portanto, nem nas condições físicas do homem inocente, nem nas condições físicas do homem culpado; é somente uma ressurreição de nossas misérias, mas com uma sobrecarga de misérias novas, infinitamente mais horríveis; é, em parte, uma verdadeira criação, e a mais maliciosa que a imaginação tenha ousado conceber. Deus muda de ideia, e para juntar aos tormentos espirituais tormentos carnais que possam durar para sempre, ele muda bruscamente, por um efeito de seu poder, as leis e as propriedades por ele mesmo atribuídas, desde o começo, aos compostos da matéria; ressuscita carnes doentes e corrompidas, e amarrando com um nó indestrutível esses elementos que tendem a se separar por si mesmos, ele mantém e perpetua, contra a ordem natural, essa podridão viva; ele joga-a no fogo, não para purificá-la, mas para conservá-la tal qual ela é, sensível, sofredora, ardente, horrível, tal qual ele a quer, imortal.

“Faz-se de Deus, por esse milagre, um dos carrascos do inferno, pois se os condenados não podem imputar senão a si mesmos seus males espirituais, podem, em contrapartida, atribuir os outros a Ele. Era demasiado pouco, aparentemente, abandoná-los após a morte à tristeza, ao arrependimento e a todas as angústias de uma alma que sente que perdeu o bem supremo; Deus irá, segundo os teólogos, buscá-los nessa noite, no fundo do abismo; ele os trará um momento à luz, não para consolá-los, mas para revesti-los de um corpo hediondo, flamejante, imperecível, mais contaminado do que a túnica de Dejanira, e só então ele os abandona para sempre.

“Ele nem mesmo os abandona, visto que o inferno só subsiste, assim como a terra e o céu, por um ato permanente da sua vontade, sempre ativa, e tudo se desfaria se ele cessasse de sustentá-lo. Ele manterá então incessantemente a mão sobre eles para impedir seu fogo de se extinguir e seus corpos de se consumir, querendo que esses desgraçados imortais contribuam, pela perenidade de seu suplício, para a edificação dos eleitos.”

14. Dissemos, com razão, que o inferno dos cristãos exagerara o dos pagãos. No Tártaro, com efeito, veem-se os culpados torturados pelo remorso, sempre diante de seus crimes e de suas vítimas, oprimidos por aqueles que haviam oprimido durante a vida; veem-se fugir da luz que os penetra, e procurar em vão escapar aos olhares que os perseguem; o orgulho é aí abaixado e humilhado; todos carregam os estigmas de seu passado; todos são punidos por suas próprias faltas, a tal ponto que, para alguns, basta abandoná-los a si mesmos, e se julga inútil acrescentar outros castigos. Mas são sombras, ou seja, almas com seus corpos fluídicos, imagem de sua existência terrestre; não se veem os homens retomarem seu corpo carnal para sofrer materialmente, nem o fogo penetrar sob sua pele e saturá-los até à medula dos ossos, nem o luxo e o refinamento de suplícios que fazem a base do inferno moderno. Encontram-se lá juízes inflexíveis mas justos, que proporcionam a pena à falta, ao passo que no império de Satã, todos são confundidos nas mesmas torturas; tudo se baseia na materialidade; mesmo a equidade é banida.

Hoje em dia há, sem dúvida, na própria Igreja, muitos homens sensatos que não admitem essas coisas ao pé da letra e veem nelas apenas alegorias cujo sentido é preciso apreender; mas sua opinião é somente individual e não constitui lei. A crença no inferno material com todas as suas consequências, no entanto, ainda é um artigo de fé.

15. Pergunta-se como homens puderam ver essas coisas no êxtase se elas não existem. Não é aqui o lugar de explicar a fonte das imagens fantásticas que se produzem às vezes com as aparências da realidade. Diremos somente que é preciso ver nisso uma prova do princípio de que o êxtase é a menos segura de todas as revelações,* porque esse estado de sobre excitação não é sempre efeito de um desprendimento da alma tão completo quanto se poderia crer, e encontra-se aí com muita frequência o reflexo das preocupações da véspera. As ideias das quais o espírito é nutrido e das quais o cérebro, ou melhor, o envoltório perispiritual correspondente ao cérebro, conservou a impressão, reproduzem-se amplificadas como numa miragem, sob formas vaporosas que se cruzam e se confundem, e compõem conjuntos bizarros. Os extáticos de todos os cultos sempre viram coisas em relação com a fé de que estavam penetrados; não é então surpreendente que aqueles que, como Santa Teresa, estão fortemente imbuídos das ideias do inferno, tais como as apresentam as descrições verbais ou escritas e os quadros, tenham visões que não são, propriamente falando, senão a reprodução daquelas, e produzam o efeito de um pesadelo. Um pagão cheio de fé teria visto o Tártaro e as Fúrias, como teria visto no Olimpo Júpiter empunhando o raio.

BIBLIOGRAFIA. O LIVRO O CÉU E O INFERNO.MATÉRIA DIVULGADA PELO MÉDIUM GETULIO PACHECO QUADRADO.

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