Penas “Eternas”
Existem penas eternas? Há episódios difíceis nas vidas das pessoas, os
quais sejam sentidos como de duração eterna? Um sofrimento sem fim para
criaturas é compatível com a visão de Deus representar o Criador de tudo e
todos, a Bondade e a Sabedoria em seu máximo grau? Há uma duração fixa de tempo
de sofrimento relativo a cada erro? A reencarnação é compatível com a ideia de
penas eternas?
O que significa “eterno”?
Na origem da palavra, do latim aeternalis, eterno é algo que dura
por éons (do grego aión — tempo, era, duração da vida), ou
seja, por um tempo muito grande ou desconhecido. Não significa duração para
sempre, mas algo com duração que parece não ter fim, devido à
nossa limitada percepção do tempo.
Penas eternas e a visão sobre Deus
No capítulo VI da obra “O Céu e o Inferno” [1], intitulado “Doutrina das penas
eternas”, Allan Kardec discorre detalhadamente acerca desse tema. Nos itens 10
a 17 do mesmo capítulo, o Codificador do Espiritismo apresenta a refutação a
argumentos favoráveis à existência de penas eternas. Exemplifiquemos um deles:
a visão que se tem sobre Deus. Há duas possibilidades referentes às penas
eternas e sua consequente maneira de buscar entender Deus:
1. As penas eternas
existem, pois a gravidade da ofensa é proporcional à qualidade do ofendido.
Sendo Deus infinito, também é infinita a ofensa e, por conseguinte, infinita a
punição; ou
2. As penas eternas não
existem, pois, se Deus é soberanamente justo e bom, infinito em todas as
perfeições, não ofendemos a Deus, mas à nossa própria consciência, a qual
reclama entendimento e reparação do erro, condições as quais, uma vez
atendidas, fazem cessar o sofrimento advindo de um ato incorreto. Quando uma
criança, começando a caminhar, mexe onde não deve, ela não está a ofender aos
pais, se eles possuírem a devida maturidade; antes, a criança requer orientação
e proteção.
Considerar a existência de penas eternas ofende ao bom senso e ao nosso
entendimento de Deus todo bondade, justiça e misericórdia. Neste mesmo diapasão
são as palavras de Santo Agostinho, ao responder à questão 1009 de “O Livro dos
Espíritos” [2]: “Interrogai o vosso bom-senso, a vossa razão e perguntai-lhes
se uma condenação perpétua, motivada por alguns momentos de erro, não seria a
negação da bondade de Deus. Que é, com efeito, a duração da vida, ainda quando
de cem anos, em face da eternidade? Eternidade! Compreendeis bem esta palavra?
Sofrimentos, torturas sem-fim, sem esperanças, por causa de algumas faltas! O
vosso juízo não repele semelhante ideia? Que os antigos tenham considerado o
Senhor do Universo um Deus terrível, cioso e vingativo, concebe-se. Na
ignorância em que se achavam, atribuíam à divindade as paixões dos homens.
Esse, todavia, não é o Deus dos cristãos, que classifica como virtudes
primordiais o amor, a caridade, a misericórdia, o esquecimento das ofensas.
Poderia ele carecer das qualidades, cuja posse prescreve, como um dever, às
suas criaturas? Não haverá contradição em se lhe atribuir a bondade infinita e
a vingança também infinita? Dizeis que, acima de tudo, ele é justo e que o
homem não lhe compreende a justiça. Mas, a justiça não exclui a bondade e ele
não seria bom, se condenasse a eternas e horríveis penas a maioria das suas
criaturas. Teria o direito de fazer da justiça uma obrigação para seus filhos,
se lhes não desse meio de compreendê-la? Aliás, no fazer que a duração das
penas dependa dos esforços do culpado não está toda a sublimidade da justiça
unida à bondade? Aí é que se encontra a verdade desta sentença: ‘A cada um
segundo as suas obras.’”
Kardec, no capítulo VI de “O Céu e o Inferno”, apresenta inclusive citações
bíblicas as quais atestam não haver penas eternas, como em Ezequiel, 33:11:
“Dize-lhes: Tão certo como eu vivo, diz o Senhor Deus, não tenho prazer na
morte do ímpio, mas em que o ímpio se converta de seu caminho, e viva.”
A duração de uma pena, que não é eterna, se baseia no tempo necessário a que o
Espírito se melhore. Diz o Espírito São Luís na questão 1004 de “O Livro dos
Espíritos” [2]: “Sendo o estado de sofrimento ou de felicidade proporcionado ao
grau de purificação do Espírito, a duração e a natureza de seus sofrimentos
dependem do tempo que ele gaste em melhorar-se. À medida que progride e que os
sentimentos se lhe depuram, seus sofrimentos diminuem e mudam de natureza.”
Distorções na noção da passagem do tempo
O entendimento da passagem do tempo difere entre as pessoas e a condição em que
se encontrem (“O Livro dos Espíritos”, questão 240). Um Espírito sofredor
percebe uma passagem mais longa do tempo, o que não ocorre com Espíritos mais
purificados (“O Livro dos Espíritos”, questão 1005).
Na apresentação da chamada escala espírita, uma classificação didática do grau
de adiantamento moral e intelectual dos Espíritos, Allan Kardec estabelece três
ordens de Espíritos: imperfeitos, bons e puros. A Humanidade terrestre é
composta predominantemente por Espíritos ainda imperfeitos, os quais já
superaram as primeiras etapas das existências humanas, mas carentes de elevação
moral. Na descrição do perfil geral dos Espíritos ainda imperfeitos, no item
101 de “O Livro dos Espíritos” [2], Kardec pontua uma percepção relativa do
tempo dos sofrimentos: “Predominância da matéria sobre o espírito. Propensão
para o mal. Ignorância, orgulho, egoísmo e todas as paixões que lhes são consequentes.
(...) Conservam a lembrança e a percepção dos sofrimentos da vida corpórea e
essa impressão é muitas vezes mais penosa do que a realidade. Sofrem, pois,
verdadeiramente, pelos males de que padeceram em vida e pelos que ocasionam aos
outros. E, como sofrem por longo tempo, julgam que sofrerão para sempre.”
A percepção do tempo varia de acordo com o que se está experimentando. Não
raro, vivenciando momentos agradáveis, não se sente o tempo passar. Situações
difíceis, muitas vezes, causam uma sensação de demora. Estudo [3] feito com
pacientes em UTI (Unidade de Terapia Intensiva) de hospitais indica haver, nas
pessoas internadas nesses locais, uma distorção da noção de tempo, a qual traz
ansiedade e sofrimento além daqueles causados pela enfermidade que os levou a
necessitar desses cuidados médicos.
(...) “a questão da temporalidade é complexa, representa algo além da
perda do referencial do dia e da noite e aspectos de iluminação. A noção de
tempo/espaço representa uma maneira simbólica de reorganizar-se,
reestruturar-se, enfim, de reconhecer-se diante da vida.”
O filósofo alemão Martin Heidegger, em seu livro “Ser e Tempo” [4], publicado
em 1927 e considerado, por profissionais da área, um dos trabalhos mais
importantes em filosofia do século XX, afirma que a compreensão de que
existimos, bem como a do tempo, é ligada ao porvir. Segundo este autor,
perceber a sequência do tempo é se ver em algo que está por vir.
“‘Pre’ e ‘preceder’ indicam o porvir que, como tal, os possibilita, de
maneira a que possa se dar um ente em que está em jogo seu
poder ser. O projetar-se em ‘função de si mesmo’, fundado no porvir, é um
caráter essencial da existencialidade. O seu sentido
primordial é o porvir. (...) A temporalidade originária e própria se
temporaliza a partir do porvir em sentido próprio, de tal modo que só no vigor
de ter sido, vigente e no porvir, é que ela desperta a atualidade. O
porvir é o fenômeno primordial da temporalidade originária e própria.”
Essa visão é coerente com a assertiva abaixo, de Joanna de Angelis [5]:
“A consciência do vir-a-ser proporciona uma mente aberta, com capacidade
para considerar com clareza e saúde todos os fatos da existência,
comportando-se de maneira tranquila, com possibilidades de conquistar o
infinito.”
Dessa forma, tal como ocorre com um paciente em uma UTI, um Espírito, encarnado
ou desencarnado, em sofrimento físico e/ou moral, pode sofrer uma distorção em
seu entendimento de tempo; dias podem parecer meses ou anos; a falta de clareza
no porvir afeta a compreensão de sua existência, e o sofrimento é percebido
como interminável, uma “pena eterna”, ainda que dure alguns dias ou meses. Não
se está buscando fazer pouco do sofrimento de ninguém, mas sim trazer base para
o entendimento do fato de sofrimentos intensos parecerem durar muito mais do
que o seu tempo medido no relógio e no calendário.
Duração das penas
Ainda a respeito do tempo, Kardec orienta, à elucidativa obra “O Que É o
Espiritismo”, que a duração de uma expiação devida a um erro não é condicionada
a tempo, mas a uma efetiva evolução, ao aprendizado e superação da lição [6]:
“A duração do castigo é subordinada ao melhoramento do Espírito culpado.
Nenhuma condenação por tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus
exige, para pôr um termo aos sofrimentos, é o arrependimento, a expiação e a
reparação; em uma palavra, um melhoramento sério e efetivo, uma volta sincera
ao bem. O Espírito é assim o árbitro de sua própria sorte; sua pertinácia no
mal prolonga-lhe os sofrimentos; seus esforços para fazer o bem os minoram ou
abreviam. Sendo a duração da pena subordinada ao arrependimento, o Espírito
culpado, que não se arrependesse e nunca se melhorasse, sofreria sempre, e para
ele então a pena seria eterna. Essa eternidade de penas deve ser entendida no
sentido relativo e não no absoluto. Uma condição inerente à inferioridade do
Espírito é não ver o termo da sua situação e crer que há de sofrer sempre — o
que é para ele um castigo. Desde que, porém, sua alma se abra ao
arrependimento, Deus lhe faz entrever um raio de esperança.”
Mesmo o que foi programado para nossa reencarnação pode ser melhorado ou
dificultado por nossas escolhas e ações positivas ou menos felizes (leia, neste
blog, a postagem “O amor cobre uma multidão de pecados.”).
Reencarnação desfaz o mito das penas eternas
Como já abordado acima, considerar a existência de penas eternas é contrário ao
bom senso e ao nosso entendimento de Deus todo bondade, justiça e misericórdia.
Os Espíritos nos orientam, à questão 617 de “O Livro dos Espíritos” [2] (leia,
neste blog, a postagem “Considerações sobre a pluralidade das existências”), que um
aprendizado pleno não pode ser concluído em apenas uma existência.
Em relação a esse tema, Kardec apresenta, na Revista Espírita [7], mensagem
mediúnica relatando: “Estando admitido que a justiça de Deus não pode se
misturar com as penas eternas, a razão deve concluir pela necessidade: 1ª de um
período de tempo durante o qual o Espírito examina o seu passado, e forma as
suas resoluções para o futuro; 2ª de uma existência nova em harmonia com o
adiantamento desse Espírito.” Esta observação é coerente com a citação bíblica
de Paulo, em sua carta aos Hebreus, capítulo 9, versículo 27: “É ordenado ao
homem morrer uma vez, e após isso um julgamento”. No texto em grego, do qual
surgiram as traduções para o latim e, após, para o português, o termo traduzido
por julgamento era o substantivo krisis, derivado do verbo krino, sendo que este último significa “eu decido”. Da
palavra krisis provêm os termos crise e crítica. Crise diz
respeito a um ponto de virada, uma oportunidade de análise para melhoramento.
Muitas traduções desse trecho bíblico referem krisis como
julgamento. Assim podemos entender, desde que compreendamos que se trata de um
ponto de decisão, de análise de suas escolhas, feita entre o Espírito, sua
consciência e Deus, e não um julgamento por qualquer “juiz” externo a essa
tríade. Esta passagem bíblica indica, portanto, que a personalidade que o
Espírito temporariamente anima deixará de existir na Terra com a morte do corpo
físico, quando então o Espírito analisará o que há de avanços ou oportunidades
de melhoria para as existências corpóreas seguintes. Quando atingir-se o nível
devido de evolução moral e intelectual, não mais serão necessários estágios na
matéria densa, advindo aí novas e superiores etapas de nosso caminho rumo à
perfeição.
O Codificador, corroborando essa ideia, na obra “O Céu e o Inferno” [1], no
item 19 do Capítulo VI da sua primeira parte, afirma: “Para estar de acordo com
a rigorosa justiça, chegaremos, pois, à conclusão de que as almas mais
adiantadas são as atrasadas de outro tempo, com progressos posteriormente
realizados. Mas, aqui atingimos a questão magna da pluralidade das
existências como meio único e racional de resolver a dificuldade.”
Leia, também, neste blog, as postagens “O Céu e o inferno”, “Evolução Espiritual de Longo Prazo”, “O amor cobre uma multidão de pecados.”, “Expiação, Prova e Missão”, “Tranquilidade no Retorno à Pátria Espiritual” e “A Reencarnação na Bíblia”.
Bons estudos!
Carla e Hendrio
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