O
LIVRO O CÉU E O INFERNO.
O purgatório –
1 — O Evangelho
não faz nenhuma menção do purgatório, que só foi admitido pela Igreja no ano de
563. Trata-se inevitavelmente de um dogma mais racional e mais conforme à
justiça de Deus que o inferno, pois estabelece penas menos rigorosas e mais
aceitáveis para as faltas de mediana gravidade.
A ideia do
purgatório funda-se, portanto, no princípio da equidade, pois comparado com a
justiça humana equivale à detenção temporária em relação com a pena de
condenação. O que se pensaria de um país que só tivesse a pena de morte para
todos os crimes, até os mais simples delitos? Sem o purgatório só há para as
almas as duas alternativas extremas: a felicidade absoluta ou o suplício
eterno. Nesse caso, o que seria das almas culpadas somente de faltas leves? Ou
elas partilhariam a felicidade dos eleitos sem serem perfeitas, ou sofreriam o
castigo dos maiores criminosos sem os terem igualado no mal, o que não seria
justo nem racional.
2 — Mas a noção
do purgatório teria de ser necessariamente incompleta, pois só conhecendo o
suplício do fogo procuraram diminuí-lo numa ideia atenuada do inferno. As almas
ainda se queimam, mas de maneira menos intensa. Não conciliável o progresso com
o dogma das penas eternas, as almas não podem sair do purgatório através do seu
próprio adiantamento, mas sim pela virtude das preces que se fazem ou se mandam
fazer em sua intenção.
Se a ideia inicial
foi boa, não se deu o mesmo com as suas consequências, em razão dos abusos de
que ela se tornou fonte. Em virtude das preces pagas o purgatório se
transformou numa mina mais produtiva que o inferno (20).
3 — O lugar do
purgatório nunca foi determinado, nem claramente definida a natureza das penas
que nele são impostas. Estava reservado à Nova Revelação preencher esta lacuna
ao nos explicar as causas das misérias da vida terrena, que somente o princípio
da pluralidade das existências poderia justificar.
Essas misérias são
necessariamente resultantes das imperfeições da alma, pois se a alma fosse
perfeita não cometeria faltas e não teria de sofrer as suas consequências. O
homem que fosse sóbrio e moderado em tudo, por exemplo, não se tornaria presa
das doenças provocadas pelos excessos. Na maioria das vezes ele se torna
infeliz neste mundo por sua própria culpa. Mas ele é imperfeito, já o devia ser
antes de vir para a Terra. Aqui ele expia não somente as faltas atuais, mas
também as anteriores que não pode antes reparar. Sofre nesta vida as provas que
fez os outros sofrerem numa outra existência. As vicissitudes por que passa são
ao mesmo tempo um castigo temporário e uma advertência quanto às imperfeições
de que se deve livrar para evitar desgraças futuras e progredir na direção do
bem.
Elas são para as
almas lições da experiência, às vezes rudes, mas tanto mais aproveitáveis
quanto mais profunda a impressão que possam deixar. Essas vicissitudes
proporcionam a oportunidade de lutas incessantes que desenvolvem as suas forças
e as suas faculdades morais e intelectuais, fortificando a alma na prática do
bem. Saindo sempre vitoriosa, ela se beneficia se tiver a coragem de enfrentar
a prova até o fim. O prémio da vitória ela a receberá na vida espiritual, onde
entrará radiosa e triunfante como o soldado que sai da refrega e vai receber o
seu galardão.
4 — Cada
existência representa para a alma a oportunidade de um adiantamento. Depende da
sua vontade que esse adiantamento seja o maior possível, permitindo-lhe subir
numerosos degraus ou permanecer no mesmo ponto. Neste último caso ela terá
perdido a oportunidade, e como é sempre necessário que cedo ou tarde pague a
sua dívida, terá de recomeçar numa nova existência as mesmas lutas em condições
mais penosas, porque a uma nódoa que não apagou ela acrescentou outra.
É pois nas
encarnações sucessivas que a alma se liberta pouco a pouco das suas
imperfeições, que ela se purga, numa palavra, até que se torne bastante pura
para merecer libertar-se dos mundos de expiação e ir para os mundos mais
felizes, deixando esses mais tarde para gozar da felicidade suprema.
O Purgatório não é,
portanto, uma ideia vaga e incerta: é uma realidade material que vemos, tocamos
e sofremos. Ele se encontra nos mundos de expiação e a Terra é um deles. Os
homens expiam nela o seu passado e o seu presente e m benefício do seu futuro.
Mas contrariamente à ideia que se faz a respeito, depende de cada um abreviar
ou prolongar a sua permanência neste mundo, segundo o grau de adiantamento e
depuração a que possa chegar pelo próprio trabalho. Dela saímos. não por haver
completado um certo tempo ou pelos méritos de outros, mas pelo nosso próprio
mérito, segundo estas palavras de Cristo: A cada um segundo suas obras,
palavras que resumem toda a justiça de Deus.
5 — Aquele que
sofre nesta vida pode dizer, portanto, que é por não estar suficientemente
depurado e que, se não o fez na existência anterior terá ainda que sofrer na
seguinte. Isto é ao mesmo tempo equitativo e lógico. Sendo o sofrimento
inerente à imperfeição, sofre-se por tanto tempo quanto, se for imperfeito,
como se sofre de uma doença por tanto tempo quanto não se consegue extinguir as
suas causas. É assim que um homem orgulhoso sofrerá as consequências do
orgulho, da mesma maneira que um egoísta as do egoísmo.
6 — O Espírito
culpado sofre primeiramente n a vida espiritual em razão dos graus da sua
imperfeição; sofre depois na vida corporal que lhe é dada como meio de
reparação. É por isso que ele se reencontra com as pessoas que tenha ofendido,
seja em situações semelhantes àquelas em que praticou o mal, seja em situações
que representam o seu reverso, como neste exemplo: estar na miséria se foi um
mau rico ou numa condição humilhante se foi um orgulhoso.
O fato de haver
expiação no mundo espiritual e na Terra não representa um duplo castigo para o
Espírito. É o mesmo castigo que se prolonga na vida terrena, com o fim de
facilitar o seu adiantamento através de um trabalho efetivo. Dele depende tirar
o proveito. Não é melhor para ele voltar à Terra com a possibilidade de ganhar
o Céu, do que ser condenado sem remissão ao deixá-la?
Esta liberdade que
lhe é concedida é uma prova da sabedoria, da bondade e da justiça de Deus, que
quer que o homem deva tudo aos seus esforços e seja o artífice do seu futuro.
Se ele for infeliz por maior ou menor tempo, não poderá queixar-se senão de si
mesmo, pois o caminho do progresso está sempre aberto para ele.
7 — Se
considerarmos como é grande o sofrimento de certos Espíritos culpados no mundo
invisível, como é terrível a situação de alguns, de que angústias se tornaram
presas, quanto essa situação se faz mais penosa pela impossibilidade de lhe
verem o fim, poderíamos dizer que isso é para eles o inferno, se essa palavra
não implicasse a ideia de um castigo eterno e material. Graças à revelação dos
Espíritos e aos exemplos que eles nos ofereceram, sabemos que a duração da
expiação está subordinada ao melhoramento do culpado.
8 — O
Espiritismo não vem, pois, negar a existência das penas futuras, mas pelo
contrário constatá-las. O que ele destrói é a ideia do inferno localizado, com
suas fornalhas e suas penas irremissíveis. Não nega o purgatório, desde que
prova que estamos nele. Define e precisa o purgatório ao explicar a causa das
misérias terrenas, e com isso reconduz à crença aqueles que o negavam.
O Espiritismo
condena as preces pelos mortos? Bem ao contrário, pois os espíritos sofredores
as solicitam. Faz delas um dever de caridade e demonstra a sua eficácia para os
conduzir ao bem, abreviando dessa maneira os seus tormentos (21).
Falando à
inteligência, o Espiritismo reconduz os incrédulos à fé, induzindo à prece os
que dela se afastavam. Mas ensina que a eficácia das preces depende do
pensamento e não das palavras, que as melhores preces são as que partem do
coração e não apenas dos lábios, aquelas que são ditas por nós mesmos e não as
que mandamos dizer por dinheiro. Quem ousaria reprová-lo por isso?
9 — Quer o
castigo se verifique na vida espiritual ou na Terra, e qualquer que seja a sua
duração, há sempre um termo para ele, mais ou menos longo ou curto. Não há, na
verdade, para o Espírito mais do que estas alternativas: punição temporária e
graduada segundo a culpabilidade, ou recompensa graduada segundo o mérito. O
Espiritismo não aceita a terceira, ou seja a da condenação eterna. O inferno
permanece apenas como figura simbólica dos grandes sofrimentos que parecem não
ter fim. O Purgatório é a realidade em que nos encontramos.
A palavra Purgatório exprime
a ideia de um lugar circunscrito. Eis porque se aplica mais naturalmente à
Terra, considerada como lugar de expiação, do que ao do espaço infinito em que
erram os Espíritos sofredores, e também porque a natureza da expiação terrestre
é uma verdadeira purgação.
Quando os homens
forem melhores só passarão ao mundo invisível como Espíritos bons, e estes, ao
se reencarnarem trarão para a humanidade corpórea somente criaturas
aperfeiçoadas. Então a Terra, deixando de ser um mundo de expiação, os homens
não mais sofrerão nela as misérias que são hoje as consequências de suas
imperfeições. É essa a transformação que está em marcha neste momento e que
elevará a Terra na hierarquia dos mundos. (Ver O Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. 3.) (22)
10 — Mas porque
o Cristo não falou do Purgatório? É que, não existindo a ideia, não havia
palavra especial para representá-la. Ele se serviu da palavra inferno, que
estava em uso, como um termo genérico para designar todas as modalidades das
penas futuras. Se ao lado da palavra inferno tivesse criado um termo
equivalente à Purgatório, não teria podido precisar-lhe o sentido sem tocar
numa questão reservada ao futuro. Por outro lado, isso seria consagrar a
existência de dois lugares especiais de castigo. O inferno na sua acepção
geral, revelando a ideia de punição, implicava também a de Purgatório, que
apresenta apenas uma das formas de penalidade. O futuro, devendo esclarecer os
homens sobre a natureza das penas, teria, por isso mesmo, de reduzir o inferno
ao seu justo valor.
Desde que a Igreja
achou de seu dever, após seis séculos, suprir o silêncio de Jesus a esse
respeito, decretando a existência do purgatório, foi por haver julgado que ele
não havia dito tudo. Porque não será assim para outros pontos, como para esse?
(23)
—
NOTAS:
(20) O purgatório
deu origem ao escandaloso comércio das indulgências, com as quais se vendia a
entrada no céu. Esse abuso foi a causa primeira da Reforma e foi por causa dele
que Lutero rejeitou o purgatório. (N. de Kardec). — Este caso nos mostra o
processo da evolução: o erro da concepção do inferno gerou a ideia do
Purgatório, e esta determinou, por sua vez, a reformulação da Teologia cristã e
a tentativa de volta ao Cristianismo primitivo, que preparou, com a Reforma
protestante, o caminho ao Espiritismo. (N. do T.)
(21) Ver O Evangelho Segundo o Espiritismo, Cap. 27, Ação da Prece.
(22) O grifo é
nosso e sua finalidade é chamar a atenção do leitor para o fato de que as
grandes transformações atuais que abalam o nosso mundo já estavam previstas nas
obras da codificação espírita. A Terra está sofrendo uma crise de crescimento
para se tornar um mundo maduro e portanto melhor. As desordens atuais, que
tanto nos assustam, são os prenúncios de uma nova ordem que fará a Terra
elevar-se na escala dos mundos. (N. do T.)
(23) Kardec propõe
a questão relativa ao esclarecimento que o Espírito da Verdade devia trazer
para os homens, segundo a promessa evangélica de Jesus, na hora histórica em
que estivessem maduros para recebê-lo. As igrejas cristãs condenaram, como
herética a afirmação de Kardec de que o espiritismo vinha completar o ensino do
Cristo. Kardec lembra, no trecho acima, um dos pontos em que a Igreja o
antecipou de vários séculos, fazendo ela mesma um acréscimo no ensino de Jesus.
Mas não repele esse acréscimo, pois reconhece que ele está de acordo com as
exigências lógicas da explicação das penas futuras as e com a realidade
demonstrada pelas comunicações espíritas. Localizando o Purgatório na Terra, em
virtude da natureza expiatória do planeta, Kardec ao mesmo tempo extingue a
fonte de rendas das indulgências que provocou a rebelião da Reforma e justifica
o protesto de Lutero. (N. do T.
BIBLIOGRAFIA. O
LIVRO CÉU E O INFERNO. MATÉRIA DIVULGADA PELO MÉDIUM GETULIO PACHECO QUADRADO.
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