O LIVRO DOS ESPÍRITOS. LIVRO QUARTO.ESPERANÇAS E CONSOLAÇÕES.CAPÍTULO I. PENAS E GOZOS TERRENOS. FELICIDADE E INFELICIDADE RELATIVAS.
O homem pode gozar
na Terra uma felicidade completa?
— Não, pois a vida
lhe foi dada como prova ou expiação, mas dele depende abrandar os seus males e
ser tão feliz quanto se pode ser na Terra.
Concebe-se que o
homem seja feliz na Terra quando a Humanidade estiver transformada, mas
enquanto isso não se verifica pode cada um gozar de uma felicidade relativa?
— O homem é, na
maioria das vezes, o artífice de sua própria infelicidade. Praticando a lei de
Deus ele pode poupar-se a muitos males e gozar de uma felicidade tão grande
quanto o comporta a sua existência num plano grosseiro.
Comentário de
Kardec: O homem bem compenetrado do seu destino futuro não vê na
existência corpórea mais do que uma rápida passagem. É como uma parada
momentânea numa hospedaria precária. Ele se consola facilmente de alguns
aborrecimentos passageiros, numa viagem que deve conduzi-lo a uma situação
tanto melhor quanto mais atenciosamente tenha feito os seus preparativos para
ela.
Somos punidos nesta
vida pelas infrações que cometemos às leis da existência corpórea, pelos
próprios males decorrentes dessas infrações e pelos nossos próprios excessos.
Se remontarmos pouco a pouco à origem do que chamamos infelicidades terrenas,
veremos a estas, na sua maioria, como a consequência de um primeiro desvio do
caminho certo. Em virtude desse desvio inicial entramos num mau caminho, e, de
consequência em consequência, caímos afinal na desgraça.
A felicidade
terrena é relativa à posição de cada um: o que é suficiente para a felicidade
de um faz a desgraça de outro. Há, entretanto, uma medida comum de felicidade
para todos os homens?
— Para a vida
material, a posse do necessário; para a vida moral, a consciência pura e a fé
no futuro.
Aquilo que seria
supérfluo para um não se torna o necessário para outro, e vice-versa, segundo a
posição?
— Sim, de acordo
com as vossas ideias materiais, os vossos preconceitos, a vossa ambição e todos
os vossos caprichos ridículos, para os quais o futuro fará justiça quando
tiverdes a compreensão da verdade. Sem dúvida, aquele que tivesse uma renda de
cinquenta mil libras e a visse reduzida a dez mil, considerar-se-ia muito
infeliz por não poder continuar fazendo boa figura, mantendo o que chama a sua
classe, ter bons cavalos e lacaios, satisfazer a todas as paixões, etc.
Julgaria faltar-lhe o necessário. Mas, francamente, podes considerá-lo digno de
lástima, quando ao seu lado há os que morrem de fome e de frio, sem um lugar em
que repousar a cabeça? O homem sensato, para ser feliz, olha para baixo e
jamais para os que lhe estão acima, a não ser para elevar sua alma ao
infinito. (Ver item 715).
Existem males que
não dependem da maneira de agir e que ferem o homem mais justo. Não há algum
meio de se preservar deles?
— O atingido deve
resignar-se e sofrer sem queixas, se deseja progredir. Entretanto, encontra
sempre uma consolação na sua própria consciência, que lhe dá a esperança de um
futuro melhor quando ele faz o necessário para obtê-lo.
Por que Deus
beneficia com os bens da fortuna certos homens que não parecem merecê-los?
— Esse é um favor
aos olhos daqueles que não enxergam além do presente; mas sabei-o, a fortuna é
uma prova geralmente mais perigosa que a miséria. (Ver item 814 e seguintes).
A civilização,
criando novas necessidades, não é a fonte de novas aflições?
— Os males deste
mundo estão na razão das necessidades artificiais que criais para vós mesmos.
Aquele que sabe limitar os seus desejos e ver sem cobiça o que está fora das
suas possibilidades, poupa-se a muitos aborrecimentos nesta vida. O mais rico é
aquele que tem menos necessidades.
Invejais os
prazeres dos que vos parecem os felizes do mundo. Mas sabeis, por acaso, o que
lhes está reservado? Se não gozam senão para si mesmos, são egoístas e terão de
sofrer o reverso. Lamentai-os, antes de invejá-los. Deus às vezes permite que o
mau prospere, mas essa felicidade não é para se invejar, porque a pagará com
lágrimas amargas. Se o justo é infeliz é porque passa por uma prova que lhe
será levada em conta, desde que a saiba suportar com coragem. Lembrai-vos das
palavras de Jesus: “Bem-aventurados os que sofrem porque serão consolados”.
O supérfluo não é,
por certo, indispensável à felicidade, mas não se dá o mesmo com o necessário.
Ora, a desgraça daqueles que serão privados do necessário não é real?
— O homem não é
verdadeiramente desgraçado senão quando sente a falta daquilo que lhe é
necessário para a vida e a saúde do corpo. Essa privação é talvez consequência
de sua própria falta e então ele só deve queixar-se de si mesmo. Se a falta
fosse de outro, a responsabilidade caberia a quem a tivesse causado.
Pela natureza
especial das aptidões naturais Deus indica evidentemente a nossa vocação neste
mundo. Muitos males não provêm do fato de não seguirmos essa vocação?
— Isso é verdade, e
muitas vezes são os pais que, por orgulho ou avareza, fazem os filhos se
desviarem do caminho traçado pela Natureza, comprometendo-lhes com isso a
felicidade. Mas serão responsabilizados.
Então considerais
justo que o filho de um homem da alta sociedade fabricasse tamancos, por
exemplo, se fosse essa a sua aptidão?
— Não se precisa
cair no absurdo nem no exagero: a civilização tem as suas necessidades. Por que
o filho de um homem da alta sociedade, como dizes, teria de fazer tamancos, se
pode fazer outras coisas? Ele poderá sempre se tornar útil na medida de suas
faculdades, se não as aplicar em sentido contrário. Assim, por exemplo, em vez
de um mau advogado, poderia ser talvez um bom mecânico, etc.
Comentário de
Kardec: O deslocamento dos homens de sua esfera intelectual própria é
seguramente uma das causas mais frequentes de decepção. A inaptidão para a
carreira abraçada é uma fonte inesgotável de revezes. Depois, o amor-próprio
vem juntar-se a isso, impedindo o homem de recorrer a uma profissão mais humilde
e lhe mostra o suicídio como o supremo remédio para escapar ao que ele julga
uma humilhação. Se uma educação moral o tivesse preparado acima dos tolos
preconceitos do orgulho, jamais ele seria apanhado desprevenido.
Há pessoas que,
privadas de todos os recursos, mesmo quando reine a abundância em seu redor,
não veem outra perspectiva de solução para o seu caso a não ser a morte. Que
devem fazer? Deixar-se morrer de fome?
— O homem jamais
deve ter a ideia de se deixar morrer de fome, pois sempre encontraria meios de
se alimentar, se o orgulho não se lhe interpusesse entre a necessidade e o
trabalho. Frequentemente dizemos que não há profissões humilhantes e que não é
o ofício que desonra; mas o dizemos para os outros e não para nós.
É evidente que, sem
os preconceitos sociais, pelos quais se deixa dominar, o homem sempre
encontraria um trabalho qualquer que o pudesse ajudar a viver, mesmo deslocado
de sua posição. Mas entre as pessoas que não têm preconceitos ou que os põem de
lado, não há as que estão impossibilitadas de prover às suas necessidades em
consequência de moléstias ou outras causas independentes de sua vontade?
— Numa sociedade
organizada segundo a lei do Cristo ninguém deve morrer de fome.
Comentário de
Kardec: Com uma organização social previdente e sábia o homem não pode
sofrer necessidades, a não ser por sua culpa. Mas as próprias culpas do homem
são frequentemente o resultado do meio em que ele vive. Quando o homem praticar
a lei de Deus, disporá de uma ordem social fundada na justiça e na
solidariedade e com isso ele mesmo será melhor. (Ver item 793).
Por que as classes
sociais sofredoras são mais numerosas do que as felizes?
— Nenhuma é
perfeitamente feliz, pois aquilo que se considera a felicidade muitas vezes
oculta pungentes aflições. O sofrimento está por toda parte. Entretanto, para
responder ao teu pensamento, direi que as classes a que chamas sofredoras são
mais numerosas porque a Terra é um lugar de expiação. Quando o homem a tiver
transformado em morada do bem e dos bons Espíritos não mais será infeliz neste
mundo, que será para ele o paraíso terrestre.
Por que, neste
mundo, os maus exercem geralmente maior influência sobre os bons?
— Pela fraqueza dos
bons. Os maus são intrigantes e audaciosos; os bons são tímidos. Estes, quando
quiserem, assumirão a preponderância.
Se é o homem, em
geral, o artífice dos seus sofrimentos materiais, sê-lo-á também dos sofrimentos
morais?
— Mais ainda, pois
os sofrimentos materiais são às vezes independentes da vontade, enquanto o
orgulho ferido, a ambição frustrada, a ansiedade da avareza, a inveja, o ciúme,
todas as paixões, enfim, constituem torturas da alma.
Inveja e ciúme! Felizes
os que não conhecem esses dois vermes vorazes. Com a inveja e o ciúme não há
calma, não há repouso possível. Para aquele que sofre desses males, os objetos
da sua cobiça, do seu ódio e do seu despeito se erguem diante dele como
fantasmas que não o deixam em paz e o perseguem até no sono. O invejoso e o
ciumento vivem num estado de febre contínua. É essa uma situação desejável? Não
compreendeis que, com essas paixões, o homem cria para si mesmo suplícios
voluntários e que a Terra se transforma para ele num verdadeiro inferno?
Comentário de
Kardec: Muitas expressões figuram energicamente os efeitos de algumas
paixões. Diz-se estar inchado de orgulho, morrer de inveja, secar de ciúmes ou
de despeito, perder o apetite por ciúmes, etc. Esse quadro nos dá bem a
verdade. Às vezes o ciúme nem tem objeto determinado. Há pessoas que se mostram
naturalmente ciumentas de todos os que se elevam, de todos os que saem da
vulgaridade, mesmo quando não tenham no caso nenhum interesse direto, mas
unicamente por não poderem atingir o mesmo plano. Tudo aquilo que parece acima
do horizonte comum as ofusca, e, se formassem a maioria da sociedade, tudo
desejariam rebaixar ao seu próprio nível. Temos nestes casos o ciúme aliado à
mediocridade.
O homem só é
infeliz, geralmente, pela importância que liga às coisas deste mundo. A
vaidade, a ambição e a cupidez fracassadas o fazem infeliz. Se ele se elevar
acima do círculo estreito da vida material, se elevar o seu pensamento ao
infinito, que é o seu destino, as vicissitudes da Humanidade lhe parecerão
mesquinhas e pueris, como as mágoas da criança ao se afligir pela perda de um
brinquedo que representava a sua felicidade suprema.
Aquele que só
encontra a felicidade na satisfação do orgulho e dos apetites grosseiros é
infeliz quando não os pode satisfazer, enquanto o que não se interessa pelo
supérfluo se sente feliz com aquilo que para os outros constituiria infortúnio.
Referimo-nos aos
homens civilizados, porque o selvagem, tendo necessidades mais limitadas, não
tem os mesmos motivos de cobiça e de angústias: sua maneira de ver as coisas é
muito diferente. No estado de civilização o homem pondera a sua infelicidade, a
analisa, e por isso é mais afetado por ela, mas pode também ponderar e analisar
os seus meios de consolação. Esta consolação ele a encontra no sentimento
cristão que lhe dá a esperança de um futuro melhor, e no Espiritismo, que lhe
dá a certeza do futuro*.
BIBLIOGRAFIA. O
LIVRO DOS ESPÍRITOS. MATÉRIA DIVULGADA PELO MÉDIUM GETULIO PACHECO QUADRADO.
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