O LIVRO DOS ESPÍRITOS. CAPÍTULO VIII.EMANCIPAÇÃO DA ALMA.RESUMO TEÓRICO
DO SONAMBULISMO, DO ÊXTASE E DA DUPLA VISTA.
Os fenômenos do
sonambulismo natural se produzem espontaneamente e independem de qualquer causa
exterior conhecida; mas, entre algumas pessoas, dotadas de organização
especial, podem ser provocados artificialmente, pela ação do agente magnético.
O estado designado
pelo nome de sonambulismo magnético não difere do sonambulismo natural, senão
pelo fato de ser provocado, enquanto o outro é espontâneo.
O sonambulismo
natural é um fato notório, que ninguém pensa pôr em dúvida, apesar do aspecto
maravilhoso dos seus fenômenos. Que haveria pois, de mais extraordinário ou de
mais irracional no sonambulismo magnético, por ser ele produzido
artificialmente, como tantas outras coisas? Dizem que os charlatães o têm
explorado; mais uma razão para que não seja deixado nas suas mãos. Quando a
Ciência se tiver apropriado dele, o charlatanismo terá muito menos crédito
entre as massas. Mas, enquanto se espera, como o sonambulismo natural ou
artificial são um fato, e contra fatos não há argumentos, ele se firma, apesar
da má vontade de alguns, e isso no próprio seio da Ciência, onde penetra por
uma infinidade de portas laterais, em vez de passar pela central. E, quando lá
estiver plenamente firmado, será necessário lhe conceder o direito da cidadania.
Para o Espiritismo,
o sonambulismo é mais do que um fenômeno fisiológico, é uma luz projetada sobre
a Psicologia. É nele que se pode estudar a alma, porque é nele que ela se
mostra a descoberto. Ora, um dos fenômenos pelos quais ela se caracteriza é o
da clarividência, independente dos órgãos comuns da visão. Os que contestam o
fato se fundam em que o sonâmbulo não vê sempre, e à vontade dos
experimentadores, como através dos olhos. Seria de admirar que os meios sendo
diferentes, os efeitos não sejam os mesmos? Seria racional buscar efeitos
semelhantes, quando não existe o instrumento? A alma tem as suas propriedades,
como os olhos têm a deles; é preciso julgá-los em si mesmos, e não por
analogia.
A causa da
clarividência do sonambulismo magnético e do sonambulismo natural são a mesma:
um atributo da alma, uma faculdade inerente a todas as partes do ser incorpóreo
que existe em nós, e que não tem limites além dos que são assinalados à própria
alma. O sonâmbulo vê em toda parte a que sua alma possa transportar-se,
qualquer que seja a distância.
No caso da visão à
distância, o sonâmbulo não vê as coisas do lugar em que se encontra o seu
corpo, à semelhança de um efeito telescópio. Ele as vê presentes, como se
estivesse no lugar em que elas existem, porque a sua alma lá se encontra
realmente; eis porque o seu corpo fica como aniquilado e privado de sensações,
até o momento em que a alma se reapossar dele. Essa separação parcial da alma e
do corpo é um estado anormal, que pode ter uma duração mais ou menos longa, mas
não indefinida. Essa a causa da fadiga que o corpo experimenta, após um certo
tempo, sobretudo quando a alma se entrega a um trabalho ativo.
A vista da alma ou
do Espírito não sendo circunscrita e não tendo sede determinada, isso explica
porque os sonâmbulos não podem assinalar para ela um órgão especial; eles veem
porque veem, sem saber por que nem como, pois a vista não tem, para eles, como
Espíritos, lugar próprio. Se eles se reportam ao corpo, esse lugar parece estar
nos centros em que a atividade vital é maior, principalmente no cérebro, ou na
região epigástrica, ou no órgão que, para eles, é o ponto de ligação mais
intenso entre o Espírito e o corpo.
O poder de lucidez
sonambúlica não é indefinido. O Espírito, mesmo quando completamente livre, é
limitado em suas faculdades e em seus conhecimentos, segundo o grau de
perfeição que tenha atingido; e é mais ainda, quando ligado à matéria, da qual
sofre a influência. Essa a causa por que a clarividência sonambúlica não é
universal nem infalível. E tanto menos se pode contar com a sua infalibilidade,
quanto mais a desviem do fim proposto pela natureza e a transformem em objeto
de curiosidade e de experimentação.
No estado de
desprendimento em que se encontra o Espírito do sonâmbulo, entra ele em comunicação
mais fácil com os outros Espíritos, encarnados ou não. Essa comunicação se
estabelece pelo contato dos fluidos que compõem o períspirito e servem de
transmissão ao pensamento, como o fio à eletricidade. O sonâmbulo não tem,
pois, necessidade de que o pensamento seja articulado através da palavra: ele o
sente e adivinha; é isso que o torna eminentemente impressionável e acessível
às influências da atmosfera moral em que se encontra. É também por isso que uma
influência numerosa de espectadores, e sobretudo de curiosos mais ou menos
malévolos, prejudica essencialmente o desenvolvimento de suas faculdades, que,
por assim dizer, se fecham sobre si mesmas e não se desdobram com toda a
liberdade, como na intimidade e num meio simpático. A presença de pessoas
malévolas ou antipáticas produz sobre ele o efeito do contato da mão sobre a
sensitiva.
O sonâmbulo vê, ao
mesmo tempo, o seu próprio Espírito e o seu corpo; eles são, por assim dizer,
dois seres que lhe representam a dupla existência espiritual e corporal,
confundidos, entretanto, pelos laços que os unem. Nem sempre o sonâmbulo se dá
conta dessa situação, e essa dualidade faz que frequentemente ele fale de si
mesmo como se falasse de uma pessoa estranha. É que num momento, o ser corporal
fala ao espiritual, e noutro é o ser espiritual que fala ao ser corporal.
O Espírito adquire
um acréscimo de conhecimentos e de experiências em cada uma de suas existências
corpóreas. Esquece-os, em parte, durante a sua encarnação numa matéria
demasiado grosseira, mas recorda-os como Espírito. É assim que certos
sonâmbulos revelam conhecimentos superiores ao seu grau de instrução, e mesmo à
sua capacidade intelectual aparente. A inferioridade intelectual e científica
do sonâmbulo, em seu estado de vigília, não permite, portanto, prejulgar-se
nada sobre os conhecimentos que ele pode revelar no estado lúcido. Segundo as
circunstâncias e o objetivo que se tenha em vista, ele pode hauri-los na sua
própria experiência, na clarividência das coisas presentes, ou nos conselhos que
recebe de outros Espíritos; mas, como o seu próprio Espírito pode ser mais ou
menos adiantado, ele pode dizer coisas mais ou menos justas.
Pelos fenômenos do
sonambulismo, seja natural, seja magnético, a Providência nos dá a prova
irrecusável da existência e da independência da alma, e nos faz assistir ao
espetáculo sublime da sua emancipação; por esses fenômenos, ela nos abre o
livro do nosso destino. Quando o sonâmbulo descreve o que se passa à distância,
é evidente que ele o vê, mas não pelos olhos do corpo: vê-se a si mesmo no
local, e para lá se sente transportado; lá existe, portanto qualquer coisa
dele, e essa qualquer coisa, não sendo o seu corpo, só pode ser a sua alma ou
seu Espírito. Enquanto o homem se extravia nas sutilezas de uma metafísica abstrata
e ininteligível, na busca das causas de nossa existência moral, Deus põe
diariamente sob os seus olhos e sob as suas mãos os meios mais simples e mais
patentes para o estudo da psicologia experimental.
O êxtase é o estado
pelo qual a independência entre a alma e o corpo se manifesta da maneira mais
sensível, e se torna, de certa forma, palpável.
No sonho e no
sonambulismo a alma erra pelos mundos terrestres; no êxtase, ela penetra um
mundo desconhecido, o dos Espíritos etéreos com os quais entra em comunicação,
sem entretanto poder ultrapassar certos limites, que ela não poderia transpor
sem romper inteiramente os laços que a ligam ao corpo. Um fulgor resplandecente
e inteiramente novo a envolve, harmonias desconhecidas na Terra a empolgam, um
bem-estar indefinível a penetra: ela goza, por antecipação, da beatitude
celeste, e pode-se dizer que pousa um pé no limiar da eternidade.
No estado de êxtase
o aniquilamento do corpo é quase completo; ele só conserva, por assim dizer, a
vida orgânica. Sente-se que a alma não se liga a ele mais que por um fio, que
um esforço a mais poderia romper seu remédio.
Nesse estado, todos
os pensamentos terrenos desaparecem, para darem lugar ao sentimento puro que é
a própria essência do nosso ser imaterial. Todo entregue a essa contemplação
sublime, o extático não encara a vida senão como uma parada momentânea; para
ele, os bens e os males, as alegrias grosseiras e as misérias deste mundo não
são mais que fúteis incidentes de uma viagem da qual se sente feliz ao ver o termo.
Acontece com os
extáticos o mesmo que com os sonâmbulos: sua lucidez pode ser mais ou menos
perfeita, e seu próprio Espírito, conforme for mais ou menos elevado, é também
mais ou menos apto a conhecer e a compreender as coisas. Verifica-se nele, às
vezes, mais exaltação do que verdadeira lucidez, ou, melhor dito, sua exaltação
prejudica a lucidez; é por isso que suas revelações são frequentemente uma
mistura de verdades e erros, de coisas sublimes e de coisas absurdas, ou mesmo
ridículas. Espíritos inferiores aproveitam-se muitas vezes dessa exaltação, que
é sempre uma causa de fraqueza, quando não se sabe vencê-la, para dominar o
extático, e para tanto se revestem aos seus olhos de aparências que o mantêm
nas suas ideias preconceitos do estado de vigília. Este é um escolho, mas nem
todos são assim; cabe-nos julgar friamente e pesar as suas revelações na
balança da razão.
A emancipação da
alma se manifesta às vezes no estado de vigília, e produz o fenômeno designado
pelo nome de dupla vista, que dá aos que o possuem a faculdade de ver, ouvir e
sentir além dos limites dos nossos sentidos. Eles percebem as coisas ausentes,
por toda parte, até onde a alma possa estender a sua ação; veem, por assim
dizer, através da vista ordinária, como por uma espécie de miragem.
No momento em que
se produz o fenômeno da dupla vista, o estado físico é sensivelmente
modificado: os olhos têm qualquer coisa de vago, olhando sem ver, e toda a
fisionomia reflete uma espécie de exaltação. Constata-se que os órgãos da visão
são alheios ao fenômeno, ao verificar-se que a visão persiste, mesmo com os
olhos fechados.
Esta faculdade se
afigura, aos que a possuem, tão natural como a de ver: consideram-na um
atributo normal, que não lhes parece constituir exceção. O esquecimento se
segue, em geral, a essa lucidez passageira, cuja lembrança se torna cada vez
mais vaga, e acaba por desaparecer, como a de um sonho.
O poder da dupla
vista varia desde a sensação confusa até à percepção clara e nítida das coisas
presentes ou ausentes. No estado rudimentar, ela dá a algumas pessoas o tacto,
a perspicácia, uma espécie de segurança nos seus atos, a que se pode chamar a
justeza do golpe de vista moral. Mais desenvolvida, desperta os
pressentimentos, e ainda mais desenvolvida, mostra acontecimentos já realizados
ou em vias de realização.
O sonambulismo
natural e artificial, o êxtase e a dupla vista, não são mais do que variedades
ou modificações de uma mesma causa. Esses fenômenos da mesma maneira que os
sonhos, pertencem à ordem natural. Eis por que existiram desde todos os tempos:
a História nos mostra que eles foram conhecidos, e até mesmo explorados, desde
a mais alta Antiguidade, e neles se encontra a explicação de uma infinidade de
fatos que os preconceitos fizeram passar como sobrenaturais*.
BIBLIOGRAFIA. O
LIVRO DOS ESPÍRITOS. MATÉRIA DIVULGADA PELO MÉDIUM GETULIO PACHECO QUADRADO.
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