O LIVRO DOS ESPÍRITOS.
CAPÍTULO I
DE DEUS
1. Deus e o infinito. — 2. Provas da existência de Deus.
— 3. Atributos da Divindade. — 4. Panteísmo.
Deus e o infinito.
1.
Que é Deus?
“Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas” *
2. Que se deve entender por infinito?
“O que não tem começo nem fim; o desconhecido; tudo que é desconhecido é
infinito.”
3. Poder-se-ia dizer que Deus é o infinito?
“Definição incompleta. Pobreza da linguagem dos homens, insuficiente para
definir o que está acima de sua inteligência.”
Deus é infinito em suas perfeições, mas o infinito é uma abstração. Dizer
que Deus é o infinito é tomar o atributo de uma coisa pela coisa mesma, é
definir uma coisa que não é conhecida por uma outra que não o é mais do que a
primeira.
*O
texto colocado entre aspas, em seguida às perguntas, é a resposta que os
Espíritos deram. Para distinguir as notas e desenvolvimentos aditados pelo
Autor, quando haja possibilidade de serem confundidos com o texto da resposta,
empregou-se um outro tipo, menor. Quando formam capítulos inteiros, sem ser
possível a confusão, o mesmo tipo usado para as perguntas e respostas foi o
empregado.**
**Na Kardecpedia, tais notas e desenvolvimentos do Autor se distinguem apenas
pelo itálico.
Provas da existência de Deus.
4.
Onde se pode encontrar a prova da existência de Deus?
“Num axioma que aplicais às vossas ciências: Não há efeito sem causa. Procurai
a causa de tudo o que não é obra do homem e a vossa razão responderá.”
Para crer-se em Deus, basta se lance o olhar sobre as obras da criação. O
universo existe, logo tem uma causa. Duvidar da existência de Deus é negar que
todo efeito tem uma causa e avançar que o nada pôde fazer alguma coisa.
5. Que consequência se pode tirar do sentimento intuitivo que todos os homens
trazem em si da existência de Deus?
“A de que Deus existe; pois, donde lhes viria esse sentimento, se não tivesse
uma base? É ainda uma consequência do princípio de que não há efeito sem
causa.”
6. O sentimento íntimo que temos da existência de Deus não poderia ser fruto da
educação, resultado de ideias adquiridas?
“Se assim fosse, por que existiria nos vossos selvagens esse sentimento?”
Se o sentimento da existência de um ser supremo fosse tão somente produto de
um ensino, não seria universal e não existiria senão nos que houvessem podido
receber esse ensino, conforme se dá com as noções científicas.
7. Poder-se-ia achar nas propriedades íntimas da matéria a causa primária da
formação das coisas?
“Mas, então, qual seria a causa dessas propriedades? É indispensável sempre uma
causa primária.”
Atribuir a formação primária das coisas às propriedades íntimas da matéria
seria tomar o efeito pela causa, porquanto essas propriedades são, também elas,
um efeito que há de ter uma causa.
8. Que se deve pensar da opinião dos que atribuem a formação primária a uma
combinação fortuita da matéria, ou, por outra, ao acaso?
“Outro absurdo! Que homem de bom-senso pode considerar o acaso um ser
inteligente? Além disso, que é o acaso? Nada.”
A harmonia que regula o mecanismo do universo patenteia combinações e
desígnios determinados e, por isso mesmo, revela um poder inteligente. Atribuir
a formação primária ao acaso é insensatez, pois que o acaso é cego e não pode
produzir os efeitos que a inteligência produz. Um acaso inteligente já não
seria acaso.
9. Em que é que, na causa primária, se revela uma inteligência suprema e
superior a todas as inteligências?
“Tendes um provérbio que diz: Pela obra se reconhece o autor. Pois bem: vede a
obra e procurai o autor. O orgulho é que gera a incredulidade. O homem
orgulhoso nada admite acima de si. Por isso é que ele se denomina a si mesmo
de espírito forte. Pobre ser, que um sopro de Deus pode abater!”
Do poder de uma inteligência se julga pelas suas obras. Não podendo nenhum
ser humano criar o que a natureza produz, a causa primária é, conseguintemente,
uma inteligência superior à humanidade.
Quaisquer que sejam os prodígios que a inteligência humana tenha operado, ela
própria tem uma causa e, quanto maior for o que opere, tanto maior há de ser a
causa primária. Aquela inteligência superior é que é a causa primária de todas
as coisas, seja qual for o nome que lhe deem.
Atributos da divindade.
10.
Pode o homem compreender a natureza íntima de Deus?
“Não; falta-lhe para isso um sentido.”
11. Será dado um dia ao homem compreender o mistério da Divindade?
“Quando não mais tiver o espírito obscurecido pela matéria e, pela sua
perfeição, se houver aproximado de Deus, ele o verá e compreenderá.”
A inferioridade das faculdades do homem não lhe permite compreender a
natureza íntima de Deus. Na infância da humanidade, o homem o confunde muitas
vezes com a criatura, cujas imperfeições lhe atribui; mas, à medida que nele se
desenvolve o senso moral, seu pensamento penetra melhor no âmago das coisas;
então, faz ideia mais justa da Divindade e, ainda que sempre incompleta, mais
conforme à sã razão.
12. Embora não possamos compreender a natureza íntima de Deus, podemos
formar ideia de algumas de suas perfeições?
“De algumas, sim. O homem as compreende melhor à proporção que se eleva acima
da matéria. Entrevê-as pelo pensamento.”
13. Quando dizemos que Deus é eterno, infinito, imutável, imaterial, único,
onipotente, soberanamente justo e bom, temos ideia completa de seus atributos?
“Do vosso ponto de vista, sim, porque credes abranger tudo. Sabei, porém, que
há coisas que estão acima da inteligência do homem mais inteligente, as quais a
vossa linguagem, restrita às vossas ideias e sensações, não tem meios de
exprimir. A razão, com efeito, vos diz que Deus deve possuir em grau supremo
essas perfeições, porquanto, se uma lhe faltasse, ou não fosse infinita, já ele
não seria superior a tudo, não seria, por conseguinte, Deus. Para estar acima
de todas as coisas, Deus tem que se achar isento de qualquer vicissitude e de
qualquer das imperfeições que a imaginação possa conceber.”
Deus é eterno. Se tivesse tido princípio, teria saído do nada, ou,
então, também teria sido criado, por um ser anterior. É assim que, de degrau em
degrau, remontamos ao infinito e à eternidade.
É imutável. Se estivesse sujeito a mudanças, as leis que regem o universo
nenhuma estabilidade teriam.
É imaterial. Quer isto dizer que a sua natureza difere de tudo o que
chamamos matéria. De outro modo, ele não seria imutável, porque estaria sujeito
às transformações da matéria.
É único. Se muitos Deuses houvesse, não haveria unidade de vistas, nem
unidade de poder na ordenação do universo.
É onipotente. Ele o é, porque é único. Se não dispusesse do soberano
poder, algo haveria mais poderoso ou tão poderoso quanto ele, que então não
teria feito todas as coisas. As que não houvesse feito seriam obra de outro
Deus.
É soberanamente justo e bom. A sabedoria providencial das leis divinas se
revela, assim nas mais pequeninas coisas como nas maiores, e essa sabedoria não
permite se duvide nem da justiça nem da bondade de Deus.
Panteísmo.
14.
Deus é um ser distinto, ou será, como opinam alguns, a resultante de todas as
forças e de todas as inteligências do universo reunidas?
“Se fosse assim, Deus não existiria, porquanto seria efeito e não causa. Ele
não pode ser ao mesmo tempo uma e outra coisa.
“Deus existe; disso não podeis duvidar e é o essencial. Crede-me, não vades
além. Não vos percais num labirinto donde não lograríeis sair. Isso não vos
tornaria melhores, antes um pouco mais orgulhosos, pois que acreditaríeis
saber, quando na realidade nada saberíeis. Deixai, conseguintemente, de lado
todos esses sistemas; tendes bastantes coisas que vos tocam mais de perto, a
começar por vós mesmos. Estudai as vossas próprias imperfeições, a fim de vos
libertardes delas, o que será mais útil do que pretenderdes penetrar no que é
impenetrável.”
15. Que se deve pensar da opinião segundo a qual todos os corpos da natureza,
todos os seres, todos os globos do universo seriam partes da Divindade e
constituiriam, em conjunto, a própria Divindade, ou, por outra, que se deve
pensar da doutrina panteísta?
“Não podendo fazer-se Deus, o homem quer ao menos ser uma parte de Deus.”
16. Pretendem os que professam esta doutrina achar nela a demonstração de
alguns dos atributos de Deus: sendo infinitos os mundos, Deus é, por isso
mesmo, infinito; não havendo o vazio, ou o nada em parte alguma, Deus está por
toda parte; estando Deus em toda parte, pois que tudo é parte integrante de
Deus, ele dá a todos os fenômenos da natureza uma razão de ser inteligente. Que
se pode opor a este raciocínio? “A razão. Refleti maduramente e não vos será
difícil reconhecer-lhe o absurdo.”
Esta doutrina faz de Deus um ser material que, embora dotado de suprema
inteligência, seria em ponto grande o que somos em ponto pequeno. Ora,
transformando-se a matéria incessantemente, Deus, se fosse assim, nenhuma
estabilidade teria; achar-se-ia sujeito a todas as vicissitudes, mesmo a todas
as necessidades da humanidade; faltar-lhe-ia um dos atributos essenciais da
Divindade: a imutabilidade. Não se podem aliar as propriedades da matéria à
ideia de Deus, sem que ele fique rebaixado ante o nosso pensamento, e não
haverá sutilezas de sofismas que cheguem a resolver o problema da sua natureza
íntima. Não sabemos tudo o que ele é, mas sabemos o que ele não pode deixar de
ser, e o sistema de que tratamos está em contradição com as suas mais
essenciais propriedades. Ele confunde o Criador com a criatura, exatamente como
o faria quem pretendesse que engenhosa máquina fosse parte integrante do
mecânico que a concebeu.
A inteligência de Deus se revela em suas obras como a de um pintor no seu
quadro; mas, as obras de Deus não são o próprio Deus, como o quadro não é o
pintor que o concebeu e executou.
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