O LIVRO DOS ESPÍRITOS. PARTE SEGUNDA.MUNDO ESPÍRITA OU DOS
ESPÍRITOS.CAPÍTULO VI. VIDA ESPÍRITA. ENSAIO TEÓRICO SOBRE A SENSAÇÃO NOS
ESPÍRITOS.
O corpo é o instrumento da dor; se
não é a sua causa primeira é pelo menos a imediata. A alma tem a percepção
dessa dor: essa percepção e o efeito. A lembrança que dela conserva pode ser
muito penosa, mas não pode implicar ação física. Com efeito, o frio e o calor
não podem desorganizar os tecidos da alma; a alma não pode regelar-se nem
queimar. Não vemos todos os dias, a lembrança ou a preocupação de um mal físico
produzir os seus efeitos? E até mesmo ocasionar a morte? Todos sabem que as
pessoas que sofreram amputações sentem dor no membro que não mais existe.
Seguramente não é esse membro a sede nem o ponto de partida da dor: o cérebro a
impressão, eis tudo. Podemos, portanto, supor que há
qualquer semelhante nos sofrimentos dos Espíritos depois da morte.
Um estudo mais aprofundado do períspirito, que desempenha
papel tão importante os fenômenos espíritas — nas aparições vaporosas ou
tangíveis, no estado do Espírito no momento da morte, na ideia tão frequente
de que ainda está vivo na situação surpreendente dos suicidas, dos supliciados,
dos que se absorveram nos prazeres materiais, e tantos outros fatos
—, veio lançar luz sobre esta questão, dando lugar às explicações de que
apresentamos um resumo.
O períspirito é o liame que une o Espírito
à matéria do corpo; é tomado do meio ambiente, do fluido universal; contém ao
mesmo tempo eletricidade, fluido magnético, e até um certo ponto, a
própria matéria inerte. Poderíamos dizer que é a quintessência da
matéria. É o princípio da vida orgânica, mas não o da vida
intelectual, porque esta pertence ao Espírito. É também o agente das sensações
externas. No corpo, estas sensações se localizam nos órgãos que lhes servem de
canais. Destruído o corpo, as sensações se tornam generalizadas. Eis porque o
Espírito não diz que sofre mais da cabeça do que dos pés. É necessário, aliás,
nos precavermos de confundir as sensações do períspirito independente com as do
corpo: não podemos tomar essa últimas senão como termo de comparação, e não
como analogia. Liberto do corpo, o Espírito pode sofrer, mas esse sofrimento
não é o mesmo do corpo; não obstante, não é também um sofrimento
exclusivamente moral, como o remorso, pois ele se queixa de frio e de calor.
Mas não sofre mais no inverno do que no verão: vimo-los passar através das
chamas sem nada experimentar de penoso, o que mostra que a temperatura não
exerce sobre eles nenhuma impressão. A dor que sentem não é a dor física
propriamente dita: é um vago sentimento interior, de que o próprio Espírito nem
sempre tem perfeita consciência, porque a dor não está localizada e não é
produzida por agentes exteriores. É antes uma lembrança,
também penosa. Algumas vezes, há mais que uma lembrança como veremos.
A experiência nos ensina que, no
momento da morte, o períspirito se desprende mais ou menos lentamente do corpo.
Nos primeiros instantes o Espírito não compreende a sua situação; não acredita
que morreu; sente-se vivo; vê o seu corpo de lado, sabe que é o seu e não
entende por que está separado. Esse estado dura o tempo em que existir um liame
entre o corpo e o períspirito. Um suicida nos dizia: — “Não, eu não estou
morto”, e acrescentava: “e, entretanto, sinto os vermes que me roem”. Ora,
seguramente, os vermes não roíam o períspirito e menos ainda o Espírito, mas o
corpo. Como a separação do corpo e do períspirito não estava completa, havia
uma espécie de repercussão moral, que lhe transmitia a sensação do que se
passava no corpo. Repercussão não é bem o termo, pois poderia dar ideia de um
efeito muito material. Era antes a visão do que se passava no corpo, ao qual o
períspirito continuava ligado, que produzia essa ilusão tomada como real.
Assim, não se tratava de uma lembrança, pois durante a vida ele fora roído
pelos vermes: era uma sensação atual.
Vemos, pois, as deduções que podemos
tirar dos fatos quando atentamente observados. Durante a vida, o corpo recebe
as impressões e as transmite ao Espírito, por intermédio do períspirito, que
constitui, provavelmente, o que se costuma chamar de fluido nervoso. O corpo,
estando morto, não sente mais nada, porque não possui Espírito nem períspirito.
O Espírito, desligado do corpo, experimenta a sensação, mas como esta não lhe
chega por um canal limitado, torna-se geral. Como o períspirito é apenas um
agente de transmissão, pois é o Espírito que possui a consciência, deduz-se
que, se pudesse existir períspirito sem Espírito, ele não sentiria mais do que
um corpo morto. Da mesma maneira, se um Espírito não tivesse períspirito, seria
inacessível a todas as sensações penosas: é o que acontece com os Espíritos
completamente purificados. Sabemos que, quanto mais o Espírito se purifica,
mais eternizada se torna a essência do períspirito, de maneira que a influência
material diminui à medida que o Espírito progride, ou seja, à medida que o
períspirito se torna menos grosseiro.
Mas, dir-se-á, as sensações
agradáveis são transmitidas ao Espírito pelo períspirito, tanto quanto as
desagradáveis. Ora, se o Espírito puro é inacessível a umas, deve
sê-lo igualmente às outras. Sim, sem dúvida, àquelas que
provêm unicamente da influência da matéria que conhecemos: o som dos
nossos instrumentos, o perfume das nossas flores não lhe produzem
nenhuma impressão, e, não obstante, eles gozam de sensações íntimas,
de um encanto indefinível, das quais não podemos fazer a mínima idéia, porque
estamos para elas como os cegos de nascença para a luz.
Sabemos que elas existem, mas de que maneira? Aí se detém o nosso conhecimento.
Sabemos que o Espírito tem percepção, sensação, audição, visão, que essas
faculdades são atributos de todo o seu ser, e não apenas de certos órgãos, como
nos seres humanos. Mas ainda uma vez de que forma? Isso é o que não sabemos. Os
próprios Espíritos não podem explicar-nos porque a nossa linguagem não foi
feita para exprimir ideias que não possuímos, assim como, na linguagem dos
selvagens, não há termos para a expressão de nossas artes, nossas ciências e
nossas doutrinas filosóficas.
Ao dizer que os Espíritos são
inacessíveis às impressões da nossa matéria, queremos falar dos Espíritos mais
elevados, cujo envoltório eternizado não encontra termos de comparação na
Terra. Não se dá o mesmo com aquele cujo períspirito é mais denso,
pois ele percebe os nossos sons e sente os nossos odores, mas não por uma parte
determinada do seu organismo, como quando vivo. Poderíamos dizer que as
vibrações moleculares se fazem sentir em todo o seu ser chegando, assim,
ao sensorium commune, que e o próprio Espírito, mas de maneira
diversa, produzindo talvez uma impressão diferente que carreta uma modificação
na percepção. Eles ouvem o som da voz, e, no entanto nos compreendem sem a
necessidade da palavra, pela simples transmissão do pensamento, o que é
demonstrado pelo fato de ser essa penetração mais fácil para o Espírito
desmaterializado. A faculdade de ver é um atributo essencial da
alma, para a qual não há obscuridade, e apresenta-se mais ampla e penetrante
entre os que estão mais purificados. A alma, ou o Espírito, tem, portanto, em
si mesma a faculdade de todas as percepções. Na vida corpórea, elas
são obliteradas pela grosseria dos nossos órgãos na vida extracorpórea
libertam-se mais e mais, à medida que se torna menos denso o envoltório
semimaterial.
Tomado do meio ambiente, esse
envoltório varia segundo a natureza dos mundos. Ao passar de um mundo para
outro, os Espíritos mudam de envoltório, como mudamos de roupa ao passar do
inverno ao verão, ou do polo ao equador. Os Espíritos mais elevados, quando vêm
visitar-nos,revestem o períspirito terrestre, e então as suas percepções se
assemelham as dos Espíritos vulgares; mas todos eles, inferiores ou superiores,
não ouvem e não sentem senão o que querem ouvir e sentir. Como não possuem
órgãos sensoriais, podem tornar vontade as suas percepções ativas ou
nulas, havendo apenas uma coisa que são forçados a ouvir: os conselhos dos bons
Espíritos. A vista é sempre ativa, mas eles podem tornar-se invisíveis uns para
os outros. Conforme a classe a que pertençam, podem ocultar-se dos que lhes são
inferiores, mas não dos superiores. Nos primeiros momentos após a
morte, a vista do Espírito é sempre turva e confusa, esclarecendo-se na
proporção em que ele se liberta e podendo adquirir a mesma clareza que
tinha durante a vida, além da possibilidade de penetrar nos corpos opacos. Quanto
à sua extensão através do espaço infinito, no passado e no futuro, depende do
grau de pureza e elevação do Espírito.
Toda esta teoria, dir-se-á, não é
muito tranquilizadora. Pensávamos que, uma vez desembaraçados do nosso
envoltório grosseiro, instrumento de nossas dores, não sofreríamos mais, e nos
ensinais que sofreremos ainda, pois podemos ainda sofrer, e muito, durante
longo tempo. Mas podemos também não sofrer mais, desde o instante em que
deixamos esta vida corpórea.
Os sofrimentos deste mundo decorrem,
às vezes, de nossa própria vontade. Remontando à origem, veremos que a maioria
são consequência de causas que poderíamos ter evitado. Quantos males, quantas
enfermidades o homem deve apenas aos seus excessos, à sua ambição, às suas
paixões, enfim? O se humano que tivesse vivido sempre sobriamente, que não
houvesse abusado de nada, que tivesse sido sempre de gostos simples e desejos
modestos, se pouparia de muitas tribulações. O mesmo acontece ao Espírito: os
sofrimentos que ele enfrenta são sempre consequência da maneira por que viveu
na terra. Não terá, sem dúvida, a gota e o reumatismo, mas terá
outros sofrimentos que não serão menores.
Já vimos que esses sofrimentos são o
resultado dos laços que ainda existem entre o Espírito e a matéria. Que quanto
mais ele estiver desligado da influência da matéria, quanto mais
desmaterializado, menos sensações penosas sofrerá. Depende dele afastar-se
dessa influência, desde esta vida, pois tem o livre-arbítrio e por conseguinte
a faculdade de escolha entre o fazer e o não fazer. Que dome as suas paixões
animais; que não tenha ódio, nem inveja, nem ciúme, nem orgulho; que não se
deixe dominar pelo egoísmo; que purifique sua alma, pelos bons sentimentos; que
pratique o bem; que não dê às coisas deste mundo senão a importância que elas
merecem; e, então, mesmo sob o seu envoltório corpóreo, já se terá purificado,
desprendido da matéria, e quando o deixar, não sofrerá mais a sua influência.
Os sofrimentos físicos por que tiver passado não lhe deixarão nenhuma lembrança
penosa; não lhe restará nenhuma impressão desagradável, porque estas não
afetaram o Espírito, mas apenas o corpo; sentir-se-á feliz por se ter
libertado, e a tranquilidade de sua consciência o afastará de todo sofrimento
moral.
Interpelamos sobre o assunto milhares de Espíritos,
pertencentes a todas as classes sociais, a todas as posições. Estudamo-los em
todos os períodos da vida espírita, desde o instante em que deixaram o
corpo. Seguimo-los passo a passo na vida de além-túmulo, para observar as
modificações que neles se operavam, nas suas ideias, nas suas sensações. E a
esse respeito os seres humanos vulgares
não foram os que nos forneceram preciosos elementos de estudo. Vimos sempre que
os sofrimentos estão em relação com a conduta, da qual sofrem as consequências,
e que essa nova existência é uma fonte de felicidade inefável para aqueles que
tomaram o bom caminho. De onde se segue que os que sofrem é porque assim
quiseram, e só devem queixar-se de si mesmos, tanto no outro mundo quanto
neste.
BIBLIOGRAFIA.
O LIVRO DOS ESPÍRITOS.
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